quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Escrevi o texto abaixo baseado neste post do www.postsecret.com
http://bit.ly/9675rP
Viagem no tempo

A água fervia e eu me preparava para fazer o café naquela manhã de inverno. Chovia. Arthur ainda não tinha acordado, visto que chegara tarde do futebol da noite anterior. Eu também tinha ido dormir tarde. Seguia meu mais novo vício: internet. Vinha descobrindo as maravilhas dos chats e bisbilhotando a vida dos outros no Orkut. Os meninos ainda estavam no banho e eu já estava atrasada. Ainda não muito, mas atrasada. Certamente o trânsito não seria minha madrinha e meu chefe produziria um daqueles espetáculos grotescos de grosseria. Meu dia estava começando bem. Entrei no banho correndo, arrumei os meninos para o ônibus e acordei Arthur, também atrasado. Mal deu tempo de comer algo, mas pelo menos o café desceu bem. Belo alívio.
O caminho até o ponto foi percorrido entre desvios de poças, brigas com o guarda-chuva e pequenas corridas para ver se ainda conseguiria pegar o ônibus das 06h20min. Não consegui. Cheguei no ponto de ônibus às 06h23min. Pelo menos me deu tempo para olhar a capa da última “Veja” no jornaleiro. Mostrava a história de uma menina de nove anos que, estuprada pelo padrasto, iria fazer um aborto. Sua mãe seria excomungada, assim como a equipe médica. Ela estava grávida de gêmeos.
Meu caminho até o escritório levava em média uma hora e era percorrido, invariavelmente, comigo em pé no ônibus. Qual não foi minha surpresa ao ver um lugarzinho escondido lá no fundo... Esgueirei-me entre colegiais, homens de terno, rapazes e moças jovens até conseguir minha redenção matinal. Mais uma hora de sono. Parecia sonho!
Como o único lugarzinho disponível era no corredor, meu sonho de ter mais uma hora de sono ruiu. A cada dois minutos de cochilo, seguiam-se cinco de esbarrões em minha perna esquerda. E mais três de sacoladas em meu rosto. Como uma estratégia para salvar meu sono, pedi as sacolas das duas meninas que estavam em pé ao meu lado. Eram muito magras e pareciam estar com dificuldades em carregar suas sacolas. Era uma troca justa: eu as livrava do peso e elas me livravam das sacoladas. Obviamente fui atendida.
Quase metade do meu caminho tinha passado, quando o senhor ao meu lado me acordou para poder descer. A chuva tinha dado uma trégua naquela parte da cidade. Pensei em como o senhor tinha sorte e duvidei da minha. Tinha certeza que estaria chovendo no meu ponto de descida.
O senhor desceu e ocupei seu lugar, na esperança de que nada mais me incomodasse na meia hora que restava. Uma das meninas tomou meu lugar e me lançou um olhar de súplica. Estranhei. Com a face ruborizada e tremendo muito, ela me perguntou:
- Será que a senhora poderia escrever um texto pra mim?
Hesitei por alguns momentos e analisei a situação. Pedido bizarro. A menina parecia ter entre treze e quinze anos e vestia roupas de grife, o que claramente mostrava que ela sabia escrever. Sua sacola tinha roupas apenas, não livros como supus antes de tomar a primeira sacolada. Parecia muito assustada e talvez até fugindo de algo. Minha primeira reação foi não me envolver.
- Desculpe querida, mas estou muito cansada e preciso descansar um pouco antes de chegar ao trabalho...
- Por favor, eu preciso escrever um texto, mas não pode ser com a minha letra...
- Por quê? – perguntei curiosa.
- Porque não quero que reconheçam minha caligrafia...
- Você fez alguma coisa errada, menina?! – me peguei tratando-a como minha filha. E afinal parecia mesmo. Tinha idade para tanto, físico para tanto. Lembro-me que foi com sua idade que vim morar na cidade grande.
- Me deixa explicar, senhora. Existe um site chamado www.postsecret.com, onde as pessoas expõem seus segredos de maneira anônima, deixando uma mensagem escrita à mão. Eu gostaria de expor meu segredo lá, mas tenho medo que alguém reconheça minha letra.
- Entendi... Mas as pessoas escrevem assim, prá todo mundo ver? – perguntei incrédula.
- Mas é anônimo...
- Mesmo assim! Segredos são segredos. Se você quer expor, provavelmente é porque isso te incomoda muito. E você não tem vergonha de me contar?
- A senhora tem razão. Realmente me incomoda. Mas não sei, vi na senhora um rosto amigo, familiar. Confiei na senhora no primeiro olhar. Realmente contar é uma coisa que vai me fazer melhor, pelo menos vai diminuir minha angústia.
O rosto da menina mudou. A tremedeira passou e ela parecia mais confiante. Resolvi ajudar.
- Tudo bem, eu escrevo o texto.
Pela primeira vez a menina abriu um sorriso e falou:
- É rápido, o texto é pequeno.
Aqueles foram os últimos momentos de paz naquele dia.
Ela começou a me contar seu segredo e a cada palavra era como se uma viagem no tempo ficasse mais próxima, e eu não conseguia escrever uma mísera palavra, e uma angústia tomava conta de mim. A cada pausa, minha perturbação aumentava. A menina falava em meu ouvido, sem olhar minhas mãos, inertes. Seu fôlego preenchia meus pensamentos e as frases iam se amontoando sem fazer sentido, apesar de claramente terem. A última frase me fez desabar totalmente, relembrando o momento em que decidi fugir de casa e vir para a cidade grande. Caí no choro e só conseguir lhe olhar nos olhos e dizer, sem ter escrito nada, mas marcada para sempre pela coincidência:
- Eu também, minha filha. Eu também...

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Muito prazer, Jorge.


- Nossa, que calor! – disse a senhora sentada duas cadeiras a minha frente, do outro lado. Realmente ela estava com a razão. 38°C apontava o termômetro da rua, pelo qual eu acabara de passar. Curioso é que os verões no Rio de Janeiro são bastante úmidos, e aquela senhora apresentava um cabelo impecavelmente esticado, graças, provavelmente, a mais poderosa “chapinha” do mercado. Nem nossa sabida umidade era capaz de desfazer seu belo penteado liso europeu. Coisas da tecnologia moderna... A senhora parecia daquelas pessoas pró-ativas, que acham que entendem tudo, falam eloqüentemente, mesmo sem saber. Daquelas que largam pérolas de sabedoria e fazem aspas com as mãos.
Estou indo para São Paulo. Meu nome é Jorge e tenho 34 anos. Sou recém casado e sou pai. Sim, sou pai de uma menina de 16. Por favor, não se espante, eu já fiquei o suficiente, já que não a conhecia e estou indo conhecê-la.
Débora foi filha de uma noite e uma história para a vida toda. Uma noite entre o filho da família de classe média e a babá de seus primos. Uma história de um homem que nunca imaginou ter um uma filha, ainda mais adolescente.
Mas, como organizar a aproximação? Como me portar diante daquela quase mulher, com seus anseios, sua criação diferente, seus valores não tão claros para mim? Definitivamente, muitas questões se avolumavam em minha cabeça enquanto o ônibus engolia o asfalto em direção à terra da garoa.
Apesar das dúvidas e questões importantes, não pude deixar de notar uma bela mulher sentada na primeira fileira. Era alta, esguia, bastante branca, com um sotaque paulista carregado. Encantador! Aparentava 30 anos. Talvez um pouco mais. Vestia um vestido que lhe deixava as costas à mostra e uns óculos vermelhos, que lhe davam um ar intelectual. Na entrada, ela ajudou uma família de seis pessoas que estava em dificuldades para achar seus assentos.
Apesar da bela visão inicial, era difícil me desvencilhar de tanta preocupação. Isso causou um efeito paradoxal em mim, me levando ao refúgio dos sonhos tranqüilos, que só nosso subconsciente pode nos dar em momentos de crise. E por algumas horas fui feliz e não tive dúvidas. Nem o calor conseguiu me conter. Apenas a menina com o sapato boneca roxo, assim como os lacinhos na cabeça, conseguiu.
A menina gritava como se seu dedão do pé estivesse sendo marretado. Seus berros ecoavam pelo ônibus de maneira grandiloqüente, levando quem estava a dormir placidamente a acordar num grande sobressalto. Os berros foram seguidos de socos na avó, mordidas na mãe, palavras de baixo calão, solavancos na cadeira da frente, lágrimas das três. Nunca vou entender tamanho desespero.
Em meio às crianças que riam e se divertiam com a cena grotesca de bullying entre a menina de sapato boneca e lacinhos roxos, sua mãe e a avó, o filho da moça de cabelos esticados, começou a passar mal. Ele vestia uma camisa falsificada do Flamengo, um boné para trás e uma corrente no pescoço, no melhor estilo rapper americano. Sua face empalideceu e só se viu sua sombra correndo em direção ao banheiro. Seu rosto estava banhado de suor na volta.
A menina de sapato boneca e lacinhos roxos continuava seu show particular. Agora, vociferando claramente que queria descer do ônibus, ir embora. Nem havíamos saído do Rio de Janeiro ainda... Será que Débora tinha sido assim? Foi quando a bela moça esguia, que estava sem sutiã, apareceu com um suco AdeS de maçã e o entregou à pequena barraqueira. A impressão foi a de que havia toneladas de sedativos naquele suco, tamanho foi o silêncio feito em poucos minutos. A menininha agora jazia calmamente nos braços da mãe, abraçada a uma almofada de coração. Espero que Débora se torne esse tipo de mulher: a que sempre tem um AdeS de maçã para as horas difíceis.
A senhora com o cabelo esticado aproveitou o silêncio e começou a falar com a mãe da menina:
- Olha senhora, nós passageiros entendemos perfeitamente. Não fique constrangida. Não fique achando que a senhora nos atrapalhou. Nós passageiros entendemos... – Também se virava para o filho, ainda nauseado, e dizia:
- Isso é falta de Jesus. Eu era assim também, desesperada. Você não lembra? – Sem deixar tempo para o menino responder, emendou:
- Eu era uma desesperada, mas agora minha vida foi salva por Jesus. Você tem que ouvir meu filho, você tem que ir à igreja comigo. - Se virando para a mãe da menina de novo, disse:
- Vocês são crentes?
Ao que a mãe da menina acenou com a cabeça.
- Então vocês estão indo na igreja errada! Vocês têm que ir à minha igreja, porque lá nos fazemos este tipo de milagres! Essa menina está com o inimigo perto dela! – E começou a rezar baixinho. A mãe, constrangida, a acompanhou na oração, junto com a avó também.
Do meu lado, um senhor tentava abrir uma garrafa de água. Parecia um trabalho bem simples, mas ele estava tendo dificuldades. Ao perceber que me apresentaria para ajudá-lo, o moço sacou uma bela faca, como a de Crocodilo Dundee, e começou a retirar a tampa da garrafa de água de 500mL com a faca. A senhora do cabelo esticado continua falando e percebi seu sotaque nordestino, assim como o do senhor ao meu lado, que me perguntou se eu poderia levantar para que ele fosse ao banheiro.
Ao voltar do banheiro, o senhor encostou-se à poltrona já reclinada e dormiu como se tivesse tomado o AdeS de maçã. Seu ronco podia ser ouvido como os berros da menina de lacinhos e sapato boneca roxos. Mas nada me incomodaria mais. Dormi junto com o senhor, até a parada.
O ônibus sacudiu e freou, anunciando o lanchinho que se aproximava. Sim, eram 3 da tarde e possivelmente todos nós sentíamos fome. Talvez uns mais, outros menos. O rapaz ao meu lado, com uma bandeira do Brasil tatuada no braço, aparentemente pertencia ao primeiro grupo. Ao ver a menina de lacinhos e sapato boneca roxos descendo, fiquei apreensivo. “Meu Deus, ela acordou!” pensei. Mas, para minha surpresa, nada mais incomodou a menina. O que incomodou foi uma senhora que resolveu almoçar dentro do ônibus. Sua quentinha cheirava deliciosamente. E teríamos que lidar com o cheiro pelas próximas três horas.
As três horas até que passaram rapidamente, levando-se em consideração o dilúvio que caiu na estrada e o medo que se apossou de mim. É, eu senti medo da chuva. Mas o mais curioso é que viajar de ônibus foi uma decisão baseada no medo. No meu medo de voar.
Mas a vida é curiosa e às vezes nos prega peças. Foi quase chegando a São Paulo que tive um grande insight. As horas no ônibus me fizeram pensar sobre a situação que se aproximava. “Aproximação” era a palavra do momento na minha cabeça. Como eu deveria fazer? Meu cérebro bolou uma maneira peculiar.
Existe maneira melhor de se expor do que escrever? Existe maneira melhor de mostrar quem você é, do que colocar no papel o que você sente? Provavelmente exista, sim. Para Van Gogh era a pintura. Para James Joyce não. Mas para Da Vinci era todas as maneiras possíveis. Querida Débora, você não sabe, mas sou um pretenso escritor. Logo, meu cérebro pensou o seguinte: não há maneira melhor de se aproximar do que se mostrar, do que se expor. Cartesianamente pensando, aqui estou, Débora. Muito prazer, meu nome é Jorge, tenho 34 anos e sou seu pai. Seja bem-vinda ao meu cérebro.