quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Meu nome é Aurélio!

Meu nome é Aurélio, o único nome da língua portuguesa que possui as cinco vogais. Sem repetir! Aureliano também possui as cinco vogais, mas o “a” se repete. Pelo menos assim eu achava...
Aurélio era o nome de meu pai. Talvez essa seja a razão pela qual os nomes estranhos nunca morrem. Há sempre alguém disposto a homenagear um tio chamado Domóstenes. Ou Euclides. Ou Valdemar. Tenho um amigo, que tem uma irmã, que tem um amigo cujo nome é Lorestin. Lorestin Bisneto! Como falei, há sempre alguém disposto a homenagens... No meu caso, acredito ter dado sorte por meu pai ser apenas Aurélio. O único nome que possui as cinco vogais, sem repetir.
Cresci ouvindo isso. Na verdade, quando me dei conta que meu nome era totalmente diferente do nome das outras crianças e que não havia (nem nunca haveria) outro Aurélio, acabei por implicar com meu nome. Era naquela época também o nome do dicionário mais vendido. Imagina eu, um dicionário? Eu poderia ter sido um Bruno, um Leonardo ou um Felipe. Mas as malditas homenagens... Nem servia para eu ser o primeiro da chamada. Sempre tinha uma Ana ou um André. Às vezes um Alberto. Logo, até nisso fiquei para trás. Meu pai sempre tentou minimizar a situação e trazer o lado bom dessa situação. Ouvi essa história das cinco vogais durante quinze anos. Até o dia em que ele morreu e eu fiquei sendo o único Aurélio da minha casa.
Um pouco antes disso, eu fui estudar num colégio diferente. Por uma dessas sortes que se dá poucas vezes na vida, fiquei sendo conhecido pelo meu sobrenome. Magalhães. Ok, ficou melhor. Com o tempo, acabei virando o Magal. Maguito às vezes também. Mas fundamentalmente Magal. Eu adorava! Chega de Aurélio!
Meus amigos sempre souberam da peculiaridade do meu nome. Alguns deles pegavam carona com meu pai com mais freqüência, como o Gustavo, Mario, Marquinhos e o Tiago (aliás, Bandeira. Viva os sobrenomes!). Como éramos todos reféns da carona do meu pai, todos ouvíamos as histórias por trás do pomposo nome Aurélio. Logo, o fato das cinco vogais do meu nome era de domínio público. A cada vez que eu me apresentava, especialmente para garotas, ouvia-se o coro, uníssono: “Aurélio é o único nome da língua portuguesa que tem as cinco vogais sem repetir. Aureliano tem também, mas repete o “a””.
Durante anos foi assim.
Até que um dia não foi mais.
O ano era 1995. Eu passava o natal daquele ano na casa do Bandeira e éramos provavelmente uns doze rapazes entre 15 e 21 anos. Alguns com namoradas, outros não. E foi uma dessas namoradas que acabou com a mística do nome Aurélio. Luciana era seu nome.
A meia-noite já havia passado há muito e as cervejas ainda desciam redondamente pelas gargantas dos ávidos adolescentes, quando Vitor chegou à festa acompanhado por sua namorada Luciana. Vítor tinha um irmão gêmeo e era namorado de Luciana havia uns anos. Talvez um ano. Fato é que Luciana era muito tímida e raramente falava alguma coisa. Muda praticamente. Muito tímida. Os protocolos foram seguidos e fomos apresentados formalmente. Bandeira, o anfitrião, fez as honras:
- Luciana, esse aqui é o Magal. O nome dele é Aurélio... – E o coro continuou:
- ... o único nome da língua portuguesa que possui as cinco vogais sem repetir, porque Aureliano repete!
A gargalhada foi generalizada. Luciana, tímida, meio sem graça, apenas esboçou um tímido sorriso.
Não se passaram mais do que quinze minutos, para se ouvir uma gargalhada num canto da sala. Era Vitor. Nada de anormal. Acontece que a gargalhada ficou mais intensa, Vitor começou a ficar vermelho, seu dermografismo saltou aos olhos e Vitor já não conseguia mais se controlar. Luciana num canto, constrangida, também sorria. Mas um sorriso de culpa. Sentia-se mal.
Vitor não se continha e atraía todas as atenções. Ele não conseguia controlar o riso, nem o próprio corpo e balbuciava uma palavra sem nexo. E repetia essa palavra exaustivamente e continuava rindo, apontando para mim e rindo. Luciana tentava acalmar o namorado. Mas era em vão. Vitor caiu no chão e não se conteve. Lágrimas rolavam de seus olhos e gargalhadas de sua boca.
Até que, como que por encanto, Vitor conseguiu falar algo com nexo:
- A família dela tem um monte de nomes estranhos... – E apontou para Luciana, ainda completamente fora de si. Gargalhava e repetia:
- Caiu um mito, caiu um mito, caiu um mito!
Todos estavam curiosos. Foi quando ele falou:
- Claudemiro!!! Claudemiro!!! Claudemiro, porra!!!
Houve um silêncio sepulcral. Todos ouviram aquele nome e começaram a se perguntar:
- E daí?
- E daí? Porra, Claudemiro! C-L-A-U-D-E-M-I-R-O!!!
Foi o Gustavo que pescou:
- Caralho, tem as cinco vogais...
O silêncio se aprofundou. Todos se entreolhavam incrédulos. Até que eu mesmo irrompi numa grande risada. Inevitavelmente fui seguido por todos. Gargalhamos todos por uns cinco minutos. E ainda rimos dessa história.
Hoje em dia, ainda me apresento como Aurélio. Mas não digo mais que meu nome é o único com as cinco vogais sem repetir. Agora digo que é o mais bonito nome da língua portuguesa, que possui as cinco vogais sem repetir, visto que Aureliano repete e Claudemiro é feio...

sábado, 2 de janeiro de 2010

Os dois textos abaixo são relacionados. Talvez seja mais interessante ler "A cerimônia" primeiro e depois "O discurso de Leonardo". Mas isso é só minha opinião...
A cerimônia

O apresentador da cerimônia falou:
- Leonardo José Macedo Alves.
Não lembrava qual era a música que tocou depois do nome de Leonardo ser chamado, mas era um rock pesado. Daqueles que eu ouvia quando era adolescente, recém chegado ao Rio de Janeiro. Naquela época, o quartel era a grande saída para pessoas vindas do norte e do nordeste, como eu. Vivíamos a ditadura militar e era grande o prestígio e o poder das forças armadas. E meus amigos do quartel gostavam muito deste tipo de rock. Não sabia que meu filho gostava dela assim, a ponto de ser lembrado em sua formatura por tal música.
Após o chamado do apresentador, minha mulher, meus outros dois filhos e meu irmão Pedro, se levantaram e aplaudiram Leonardo, como, aliás, todo o auditório. Todo, menos eu. Não conseguia. Naquele momento, começou a passar o filme de minha vida em minha cabeça e me transportei à Bahia.
O ano era 1952 e aquele verão até que foi ameno. Eu era o terceiro filho de seis. Dos meus dois irmãos mais velhos, um já tinha morrido de barriga d’água; o outro tinha ido morar com uma tia na cidade vizinha. Invariavelmente passávamos fome, especialmente à noite, e eu tinha que olhar meus outros três irmãos.
Numa destas noites, com papai ainda na roça e mamãe terminando o jantar, Pedro, meu irmão logo abaixo de mim, me confidenciou:
- Eu quero fugir!
- Fugir pra onde?
- Não sei, só sei que eu quero trabalhar, prá ganhar meu dinheiro e não precisar mais dividir minha comida com ninguém!
Uma semana depois, Pedro fugiu (sua história de vida daria um livro inteiro e não somente um conto mal escrito, como a minha). E aquele fato ficou na minha cabeça por muito tempo, acabando por me motivar a também a sair daquela situação. Reencontrei Pedro vinte e sete anos depois e dei meu pequeno Leonardo para ele batizar. Pedro, meu irmão mais novo, foi meu grande exemplo.
Caí em mim de novo e olhei para o lado. Vi Pedro orgulhoso do afilhado, com uma expressão de vitória no rosto. A mesma que vi quando do nosso reencontro. Vitória sobre o destino. Vitória sobre a inércia da vida. Pedro começou como servente de uma editora de livros médicos e hoje é dono desta editora.
Agora éramos os únicos ainda vivos dos sete, sobreviventes daqueles tempos. Minha mãe morrera havia seis meses, meu pai e outros irmãos havia muitos anos. As coisas tinham mudado muito. Não passávamos mais fome, vivíamos sob os auspícios do grande Pedro em casas confortáveis e com comida farta.
A cerimônia seguiu com mais alguns formandos sendo chamados, até que chegou na hora das homenagens. Professores, pacientes, funcionários, pais ausentes... Realmente é um momento emocionante, lembrei da falta que meus pais me fizeram quando cheguei aqui, quase como um refugiado de guerra, vindo do sertão. O exército me deu a chance de não morrer de fome e de aprender uma profissão. Por sorte, fui servir no HCE (Hospital Central do Exército) e acabei ficando muito próximo do que sempre quis. Desde criança eu tinha um sonho: queria ser médico. Eu tratava das galinhas lá de casa, fazia autópsias em sapos, aplicava injeções em laranjas... Acabei me formando técnico em enfermagem e instrumentador cirúrgico. Naquele momento, o exército era o meu “pai” ausente e me emocionei como uma senhora ao meu lado.
Eu nunca fui muito próximo a Leonardo. Não sabia muito bem seus gostos, com quantas mulheres havia se deitado, seus autores favoritos. Sempre precisei trabalhar muito, de sol a sol, pois não queria uma vida igual à minha para meus filhos. Sabe, é aquela sensação: você sai da seca, mas a seca nunca sai de você. Você sempre acha que um dia aquilo tudo de bom que você tem vai acabar, como num passe de mágica, e você vai abrir os olhos e o Sol estará te castigando. É por isso também que eu odeio amarelo. Nada é mais seco do que o amarelo. Amarelo Sol, amarelo barro, amarelo fel. Logo, a única saída é fazer o máximo enquanto há tempo e forças para isso. Nem que isso signifique a distância dos filhos e da família.
Foi uma grande surpresa para mim quando soube que Leonardo seria o orador da turma. O vestibular já tinha sido um grande feito, obviamente, e sua trajetória brilhante na faculdade de medicina também. Mas ser o orador, ter escrito o texto final de sua formatura, realmente era uma coisa inusitada para este pai. E foi quando chamaram seu nome, para falar em nome da turma, que meu estômago ficou pequenino, meus olhos encharcaram, minha mente enegreceu e eu me senti escorrendo pela cadeira. Meu filho, filho de um retirante, orador de uma turma de médicos.
O discurso começou assim: “Eu cheguei até aqui por causa dos meus pais. Acredito que boa parte dos meus queridos amigos formandos de hoje também. São nossos pais que fundamentam nosso caminho, nos dão ferramentas para lutar e nos dão o colo para descansar. São eles o início de tudo.”. Foi um golpe certeiro no meu autocontrole. Lembrei-me de uma das poucas vezes em que lemos algo juntos. Naquele dia, a última cirurgia do dia fora suspensa e eu cheguei em casa pouco antes das dez da noite. Ainda a tempo de contar uma história antes de Leonardo dormir. Sentei-me ao seu lado, puxei um livro da escrivaninha e comecei a ler. Era “Reinações de Narizinho”. Monteiro Lobato era minha leitura favorita quando criança. Não foram mais do que quinze minutos até Leonardo dormir, e eu a chorar. A vida me massacrava. Fisicamente e psicologicamente. Hoje, com meu filho no alto do palco falando para uma platéia de pessoas com instrução, vejo que o sacrifício valeu. Na época eu não sabia se valeria. Eu tinha dúvidas relacionadas a mim, às minhas escolhas e ao mundo em volta de mim.
O discurso seguiu, falando dessa vez sobre “se tornar adulto”. Eis o trecho: “No fundo é isso o que acontece quando entramos na faculdade: começamos a deixar de ser dependentes. O fim da faculdade encerra um ciclo e inicia outro. Para alguns, o último. Tornamo-nos adultos. De certa maneira, se tornar adulto é apenas mais uma dificuldade dessa estrada. Mas certamente a mais dolorosa.”. Eu ME lembro quando virei adulto. Foi doloroso quando, ainda criança, cuidando de meu irmão, sonhando com um pedaço maior de carne, meu pai morreu. Pedro já tinha fugido e o menor já tinha morrido. Ficamos apenas três, dos nove. Minha mãe virou-se pra mim e falou: “Você agora é o homem da casa”. E foi aí que a vida começou seu massacre comigo.
Não sei se todos ali presentes tinham uma história como a minha, certamente não. Alguns provavelmente com uma história pior, outros não. Neste exato instante, Leonardo falou uma frase que eu costumava ouvir de um grande anestesiologista amigo meu, Dr. Wagner, e que lhe disse no dia que ele entrou na faculdade: “O bom médico traz consigo três C’s: competência, compaixão e compromisso.”. Ali vi minha missão cumprida. Todo o sacrifício se transformou numa família unida, feliz, realizada e orgulhosa do que viveu. Olhei para o lado e vi Pedro, minha mulher e meus outros dois filhos mais novos. Todos com uma expressão de vitória no rosto. A vida tinha me massacrado, nos massacrado, mas nós tínhamos vencido a vida.
O discurso de Leonardo

Eu cheguei até aqui por causa dos meus pais. Acredito que boa parte dos meus queridos amigos formandos de hoje também. São nossos pais que fundamentam nosso caminho, nos dão ferramentas para lutar e nos dão o colo para descansar. São eles o início de tudo.
Lembro-me bem do primeiro dia de aula, da insegurança que sentia, do “frio na barriga” do desconhecido, do medo dos veteranos. Mas aos poucos isso passou. Eu dominei meus medos, conquistei meu lugar. Tenho certeza de que foi assim com todos aqui. O início é duro. Temos que estudar e aprender coisas que nunca ouvimos falar, estudar de uma maneira diferente e menos dependente. No fundo é isso o que acontece quando entramos na faculdade: começamos a deixar de ser dependentes. O fim da faculdade encerra um ciclo e inicia outro. Para alguns, o último. Tornamo-nos adultos.
De certa maneira, se tornar adulto é apenas mais uma dificuldade dessa estrada. Mas certamente a mais dolorosa. E é isso que nos espera em muitos momentos: dor. Dor e medo. Dor, medo e insegurança. Certamente não é só isso, mas é isso o que nos deixa abalados. O medo de errar, insegurança com o primeiro doente, a dor da primeira perda. Acontecerá com TODOS. Mas é por isso que estamos aqui hoje. Foi para isso que chegamos até aqui. Estudamos seis anos para isso. Para que a dor, o medo e a insegurança que encontraremos fiquem em seus lugares, visto que são necessários. Que a insegurança seja tolerável e nos torne humildes, que a dor seja apenas um alarme, que o medo seja o impulso para o aprimoramento.
Sejamos médicos de corpo e alma. Afinal, medicina é sim sacerdócio. É o mais próximo do sobrenatural que um homem comum pode chegar. É arte, no sentido que a palavra conota, visto fazer emocionar, trazer felicidade e vida ao homem. Portanto, sejamos bons!
Uma vez me disseram que o bom médico trazia consigo três C’s: competência, compaixão e compromisso. Eu acrescento mais um: coragem. Competência, porque é o mínimo. Compaixão, porque devemos isso à humanidade: não esqueçamos que tratamos de semelhantes. Compromisso, porque fizemos um juramento. Coragem para enfrentar os males da profissão e as armadilhas da dura vida que levaremos daqui para frente.
Espero que não falte nenhum destes C’s a nós, companheiros, e que os dias de alegria sejam inspiradores, que os de tristeza façam refletir e que tenhamos saúde, felicidade e sorte ao longo da nossa jornada aqui na Terra. Obrigado e boa noite a todos.