segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Eles tem razão
Subir a minha rua todo dia era insuportável. Não importava quanto calor fazia, ou quanta chuva caía: inexoravelmente eu subia minha rua para voltar da escola. Por vezes eu protelava: uma ficha de fliperama, um milkshake de Ovomaltine, uma passada na loja de discos. Mas o destino era sempre o mesmo: escalar os paralelepípedos da Rua Dona Claudina. O irônico é que minha vila ficava exatamente quando a ladeira se transformava em reta.
Exatamente neste ponto, a gente jogava bola. Era o ponto ideal, onde o carro acabava diminuindo a velocidade por causa do aclive. Nos reuníamos sempre aos fins de semana para nossas peladas ou para nossa corrida com obstáculos. Lá fiz amigos: Bruno, Goiaba, Ricardo, Mamão... Nos jogos eu sempre me saía bem, driblando todos, apesar da minha pouca idade. Mas o grande craque era o Eduardo.
As idades variavam entre 6 e 12 anos. Eu tinha 6 e o Eduardo 10. Éramos os melhores, mas não éramos exatamente amigos. Eu era mais amigo do Ricardo, por causa da música. Só que meu entrosamento com o Eduardo nas peladas era o melhor. Éramos uma dupla imbatível. Eu tinha velocidade, driblava muito, mas muitas vezes improdutivamente. Eduardo era cerebral, tinha passadas largas, um chute potente e também era muito veloz. Ninguém ganhava da gente no golzinho. Com ele eu aprendi a tabelar com o meio-fio, ouvir o carro e parar a bola, a não chorar quando perdia o tampo do dedão, e aprendi a me posicionar prá receber o passe. Isso resume tudo: se posicionar prá receber o passe. De nada adianta saber tudo, todos os fundamentos, se você não sabe se posicionar prá receber o passe. Eu aprendi essa lição tarde demais. Esse foi meu erro.
Jogar bola na rua foi basicamente o que eu fiz entre os 6 e os 9 anos. Não havia uma pedra que eu não conhecesse, um cachorro que não tivesse latido prá mim, um carro que eu não tivesse acertado, uma jogada brilhante que eu não tivesse feito. A cada dia crescia a vontade de jogar bola prá sempre. E ainda ser pago por isso e viver disso. Eu sonhava com o Maracanã, em driblar os zagueiros e o goleiro e marcar um golaço. Sonhava em cabecear a bola no ângulo, sem defesa. A cada sonho eu abraçava a bola do meu lado ainda mais forte. A cada jogada e drible nos meus amigos de rua eu me via encantando o Maracanã.
Um dia, chegou a notícia: Eduardo tinha passado no teste pro Flamengo. Caramba! Meu parceiro de pelada ia jogar num time grande. Nessa altura eu tinha 9 anos e ele 13. Eduardo ia se mudar prá casa da tia, que ficava perto do clube. Minha dupla estava desfeita.
Eu cheguei a pensar em fazer testes. Mas nunca fui. Meus amigos de rua foram se mudando aos poucos. No fim, ficamos eu e Ricardo. A mim sobrou jogar aqui e ali, sem grande destaque. A verdade é que meu entusiasmo diminuiu muito, já que nunca mais recebi uma bola realmente boa, em condições de fazer aquilo que sempre fiz... Minha vida seguiu, mas algo ficou prá trás.
Sabe, quando a gente tem 12 anos, o tempo passa diferente. Parecia uma eternidade que eu não via o Eduardo, mas eram só 2 anos. Eu subia minha rua, naquele sol. Vi aquele cara alto, esguio lá no topo, no fim da ladeira. Pensei logo que ele teria vindo me levar pra fazer um teste no Flamengo, prá jogar com ele. Me vi de novo entusiasmado, a fim de jogar, sonhando com tudo aquilo de novo: Maracanã, dribles, gols fantásticos. Corri na direção dele e gritei seu nome. Não percebi o que estava fazendo. Pondo tudo a perder.
Como a rua era uma ladeira, eu subia correndo, gritando, acenando, mas já estava quase sem fôlego quando cheguei mais perto. Vi Eduardo debruçado, quase dentro de um carro. Ele se virou assustado, com algo em punho. Eu estava mal posicionado. Nesse momento surgiu na esquina um carro de polícia e eu não ouvi. Me vi entre Eduardo e o policial, quando o policial puxou a arma. Assustado, tropecei no meio-fio, torci meu tornozelo e perdi o tampo do dedão. No tiroteio, acabei acertado.
Eu nunca deveria ter parado de jogar. A rua tinha me ensinado a me posicionar, a driblar o meio-fio, a ouvir o carro. Mas, por ter me deixado levar e ter deixado meus sonhos, acabei sem nada. Dizem que momentos antes da sua morte, sua vida passa como um filme pela sua cabeça. Quem diz isso tem razão.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Sherlock Holmes, em cartaz no pay-per-view da Net

Guy Ritchie queria ser Christopher Nolan. Eu tenho certeza disso. Não fosse assim, seu “Sherlock Holmes” não se pareceria tanto com “Batman Begins”. O vilão escondido, o uso do medo, as cenas de lutas, tudo remete ao primeiro filme de Nolan sobre o Cavaleiro das Trevas. Além da semelhança dos filmes, ainda há o fato de Ritchie ser muito mais uma grife hoje em dia, do que um diretor respeitado. Tenho certeza de que ele se ressente disso.
O filme não é bom. O roteiro, apesar de relativamente bem construído, fez uma escolha perigosa ao aproximar o personagem da ação pura, já que ao mesmo tempo em que moderniza a história, a fragiliza por colocar a perspicácia consagrada do detetive em segundo plano muitas vezes. Talvez por isso mesmo, não haja grandes surpresas no desenrolar da trama e ainda falhas no final. Onde já se viu passar dos esgotos ao topo de uma construção subindo UM lance de escada?! Talvez tenha sido a edição, o que de qualquer maneira é um mega furo.
A fotografia é correta apenas, valorizando o lado sombrio da Londres do século XIX, sem grandes novidades. Os atores se salvam. Robert Downey Jr. bem, caracterizando seu Sherlock “James Bond” Holmes cinicamente e sem excessos. Jude Law parece meio deslocado na hora da porradaria, mas como assistente intelectual se sai bem. Rachel McAdams, sem grande destaque.
As cenas têm planos comuns, enquadramentos óbvios, mas tudo com muita pompa, embalado pela trilha do manjadíssimo Hans Zimmer, que abusa dos temas grandiosos, como sempre. Nunca há espaço para momentos mais intimistas, passagens menos pretensiosas. A sensação é essa mesmo: pretensão pura. As coreografias das lutas são cópias de tudo: “Matrix”, “Batman Begins”, “O tigre e o dragão”, e por aí vai. O que se salva no filme são as piadas, e ninguém mais adequado a fazê-las do que Robert Downey Jr. A única bola dentro de Ritchie. Em anos! Muito pouco para um filme que foi anunciado como um dos melhores do ano. Quem disse isso, certamente gostou de “Avatar” e acha o U2 a maior banda de rock do planeta.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Megadeth, Credicard Hall, São Paulo - 24/04/2010

Eu preciso deixar algo bem claro, antes de falar do show: eu não gosto muito de Megadeth. Analisando friamente os discos, excetuando-se o Rust in Peace, acho todos meia-boca. Sem exceção. Não acho uma merda, só não acho no nível dos grandes álbuns de thrash/metal. Acho Dave Mustaine um grande babaca, um cara que perdeu a grande oportunidade de sua vida por ser um idiota, arrogante e burro. Eu fico imaginando o Metallica com ele e o Cliff ainda vivo... Talvez fosse algo como um “...and justice and Peace for all” em todos os discos...
Devaneios à parte, Dave Mustaine é um artista único. Criou quase sozinho o maior disco de heavy metal da história. Não tenho medo de dizer isso. Já tive. Hoje, depois de ver o show que eu vi, digo sem medo: Rust in Peace é o maior disco de heavy metal da história. Não extiste nada sobrando. Não falta nada. As letras são incríveis, os riffs nem se fala, os solos milimétricos... Pressão o tempo todo! Até o show de ontem, eu dividia esse posto de melhor disco com o Painkiller e o Powerslave, mas sua execução na íntegra me ganhou e dirimiu minhas dúvidas.
O som da casa de shows (Credicard Hall) estava uma porcaria. A casa é uma porcaria. Daqueles tipos antigos que a boca de cena é enorme, o teto muito alto e a pista pequena. Conclusão: embola o som todo! Não existem os famosos degraus pra galera de trás ver o show na boa, por isso todo mundo se amontoa na frente. O que favorece o empurra-empurra e as confusões. Apesar disso, as rodas rolaram sem nenhum incidente. Mas o público agitou pouco, ficando bem calmo até em porradas como “Take no prisioners” e “Rust in peace... Polaris”. É incrível, você lá vendo “Tornado of souls” e o pessoal calminho. Toca “A tout Le monde” e a galera vai ao delírio. Crianças...
O show de SP foi o maior da tournè até aqui. A banda ao vivo é muito boa, por mais que Chris Broderick e Shaw Drover não sejam Marty Friedman e Nick Menza. Sobre o set, pouco a dizer. Começou com uma intro que nada mais é do que “Black Sabbath” sem a parte vocal, seguida por duas do “Endgame”, “Dialectic chaos” e “This day we fight”, pra mim as duas melhores do disco. Seguiu com “In my darkest hour”, do “So far, so good… So what?”, “Sweating bullets” e “Skin o’ my teeth” do “Countdown to extinction”. Boas músicas, bem tocadas.
Aí veio o Rust in Peace na íntegra. Mustaine só disse: “Nós sabemos por que estamos aqui”, e começou “Holy wars... The punishment due”. O que aconteceu depois é inútil tentar explicar. Para mim, era eu ali, com 12 anos, ouvindo o disco pela primeira vez. Tentando entender o que era o riff inicial da “Take no prisioners”, me emocionando com o solo da “Tornado of souls”, cantando a letra da “Holy wars”, rindo com a risadinha de “Lucretia”, tentando entender o que Mustaine canta em “Poison was the cure”, me assustando com a letra de “Dawn patrol”, tentando tirar a introdução da “Five magics”, vendo a influência do Maiden em “Hangar 18” e ficando chateado ao ouvir “Rust in peace... Polaris” porque sabia que o disco ia acabar. Foi exatamente isso que senti ao ouvir a introdução da bateria. Eu sabia que o show ia acabar ali. E realmente acabou. O que veio depois, me perdoem, não chega aos pés do que eu tinha acabado de ver. São boas músicas, mas não fazem parte do melhor disco da história.
O público recebeu muito bem “Trust”, do “Cryptic writings”. Ouviu com atenção “The right to go insane” e “Headcrusher”, do Endgame, as outras melhores do disco novo. “She-wolf”, do “Cryptic writings” e “Symphony of destruction”, do “Countdown to extinction” terminaram o show antes do bis. Músicas muito bem escolhidas.
O final teve “A tout le monde” do “Youthanasia” e “Peace sells” do “Peace sells… but who’s buying?”, além da reprise de um pedaço de “Holy wars”. Confesso que se eles tocassem o disco de novo eu veria mais feliz ainda...

terça-feira, 23 de março de 2010

Dream Theater, Citibank Hall, 20/3/2010

Confesso que minhas expectativas estavam baixas em relação ao show do Dream Theater aqui no Rio. Sou grande fã da banda, mas a proximidade do show histórico do Megadeth me deixava mais excitado do que a iminência do show do quinteto novaiorquino em minha cidade. Assim rumei até o Citibank Hall, na longínqua Curicica.
Um fila enorme me aguardava, o que me parecia totalmente desproporcional ao tamanho da banda. Convenhamos, Dream Theater não é Iron Maiden. A fila dava o tom da noite: calma, porém cheia. Em paz, mas excitada. Essa mesma fila gigantesca me fez perder os primeiros minutos do Bigelf, a banda de abertura.
Ao entrar na casa de shows, notei a platéia prestando atenção e de certa maneira até gostando do show. Não era para menos. Bons músicos, boas músicas e muita pegada. Por mais que fosse rock progressivo em essência. A atmosfera setentista estava lá nas roupas, nos intrumentos (baixo Rickenbaker, guitarra Gibson SG, bateria DW) e na atitude dos músicos. Meus ouvidos eram brindados com riffs legais, melodias bonitas e passagens mais pesadas. É como se a banda tentasse reinventar o rock progressivo de Yes, Camel e Genesis dos primórdios, e trouxesse ao encontro do stoner atual do Spiritual Beggars, Down e Black Label Society. Excelente mistura e excelente show. Mais um ponto para Mike Portnoy.
Por falar em Mike Portnoy, o Dream Theater entrou no palco sob meu olhar desconfiado, confesso de novo. Sou fã da banda, como disse, e gosto muito de todos os discos (em menor escala do “Falling into infinity”, obviamente). Mas já vi alguns shows chatos deles. Já vi James LaBrie cantando mal. Já vi o chato do Derek Sherinian fazer um solo de 20 minutos e estragar o que seria o melhor show da minha vida. Gato escaldado tem medo de água fria.
Mas fui gratamente surpreendido ao ouvir “A nightmare to remember”. Acho uma boa música, bem pesada. Mas ao vivo ela se transformou. Tornou-se épica, clássica. Todo o peso, toda a velocidade, os vocais podrões de Mike Portnoy, as passagens melódicas do refrão, tudo cresceu e me surpreendeu. Ali os caras me ganharam de novo. O que seguiu foi lindo de ouvir: “The mirror” e “Lie”, na sequencia, como no disco. Para minha absoluta surpresa, LaBrie largou a preguiça que o vinha caracterizando nos últimos anos e simplesmente detonou, especialmente em “Lie”. E eu, de cético, passei a fã de novo. Foi bom.
Veio “A rite of passage” e o solo de Jordan Rudess. Digo logo: não gosto de solos fora das músicas e essa sempre foi uma coisa que me incomodou. Porque não outra música ao invés de um solo? Mas tudo bem, o solo foi legal e teve algumas passagens interessantes, como o solo de iPod Touch e o bonequinho do telão que fazia as mesmas coisas que Rudess, e até fez um duelo com ele no final. Legal.
“Sacrificed sons” chegou com imagens emocionantes do 11 de setembro no telão e deixou a platéia emocionada. A mim também, gosto muito dessa música. “Solitary Shell” deu um ar mais leve ao show. E teve um final apoteótico, com Mike Portnoy batucando nas ferragens da bateria pelo lado de fora e tocando a introdução de “Where Eagles dare” do Maiden, no final da música. “In the name of god” talvez tenha sido a menos bem recebida pela galera, mas abriu alas pro clássico final: “Take the time”.
“Take the time” é minha música favorita do Dream Theater e eles nunca a haviam tocado aqui no Rio. Assim como em “Caught in a web”, que é tocada ao vivo de maneira diferente, eles apresentaram uma versão alternativa, sem uma estrofe inteira e com o final diferente. Não coincidentemente, a estrofe faltando é a parte mais alta da música. Possivelmente James Labrie não consiga mais cantar essa parte, mas eles talvez quisessem tocá-la mesmo assim, pois nunca a tinham tocado aqui no Rio. Foi estranho, mas eu estava tão empolgado que acabei gostando. Ainda rolou um pedaço de “Anthem” do Rush.
O bis trouxe “The count of Tuscany” e toda sua emoção e peso. Essa música já se tornou clássica para mim e pra muita gente que cantou a letra inteira. Sensacional.
A banda parecia feliz, com Rudess fazendo vídeos e usando uma camisa com o rosto de Portnoy estampado, Portnoy fazendo brincadeiras com a câmera, Petrucci e Portnoy fazendo caretas um para o outro. Myung, contido como sempre e LaBrie cantando muito bem, mas interagindo e agitando pouco, também como sempre.
Digo sem medo de errar que foi o melhor show do Dream Theater que eu já vi. Sem dúvidas, a night to remember.
Amigos, estou de volta. Na verdade, voltarei aqui para dar vazão à minha veia jornalística frustrada. O blog, por hora, não terá mais meus textos de ficção (vejam que eu não os chamei de "literários" hehehehe), mas sim resenhas de discos, shows e filmes. Tudo que eu gosto vou tentar colocar aqui. Quem sabe com o tempo eu volte a colocar meus outros textos, veremos... Por enquanto, vou mostrar a vcs meu gosto e coisas que formaram meu caráter. O que teremos aqui, será eu falando de arte. E começarei com um show que vi no sábado. Haverá mais. Seeya!

sábado, 6 de março de 2010

Amigos, nestes 3 meses muita coisa aconteceu. Me expus de forma visceral aqui pra vcs, mostrando meu textos e um pouco de mim. Mas este tempo acabou. O blog vai parar de ser atualizado. O que não quer dizer que eu vá parar de escrever! A resposta que tive de vcs, leitores, foi muito melhor do que eu poderia sonhar! Isso me dá ânimo e vontade de continuar. Provavelmente até o fim do ano eu tenha material suficiente pra lançar algo. Se for esse o caso, TODOS vcs que seguem o blog saberão.
Obrigado pelas críticas, sugestões, elogios e pela discussão dos textos em si. Isso é muito legal e eu vou sentir falta.
Seeya
TB

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Escrevi o texto abaixo baseado neste post do www.postsecret.com
http://bit.ly/9675rP
Viagem no tempo

A água fervia e eu me preparava para fazer o café naquela manhã de inverno. Chovia. Arthur ainda não tinha acordado, visto que chegara tarde do futebol da noite anterior. Eu também tinha ido dormir tarde. Seguia meu mais novo vício: internet. Vinha descobrindo as maravilhas dos chats e bisbilhotando a vida dos outros no Orkut. Os meninos ainda estavam no banho e eu já estava atrasada. Ainda não muito, mas atrasada. Certamente o trânsito não seria minha madrinha e meu chefe produziria um daqueles espetáculos grotescos de grosseria. Meu dia estava começando bem. Entrei no banho correndo, arrumei os meninos para o ônibus e acordei Arthur, também atrasado. Mal deu tempo de comer algo, mas pelo menos o café desceu bem. Belo alívio.
O caminho até o ponto foi percorrido entre desvios de poças, brigas com o guarda-chuva e pequenas corridas para ver se ainda conseguiria pegar o ônibus das 06h20min. Não consegui. Cheguei no ponto de ônibus às 06h23min. Pelo menos me deu tempo para olhar a capa da última “Veja” no jornaleiro. Mostrava a história de uma menina de nove anos que, estuprada pelo padrasto, iria fazer um aborto. Sua mãe seria excomungada, assim como a equipe médica. Ela estava grávida de gêmeos.
Meu caminho até o escritório levava em média uma hora e era percorrido, invariavelmente, comigo em pé no ônibus. Qual não foi minha surpresa ao ver um lugarzinho escondido lá no fundo... Esgueirei-me entre colegiais, homens de terno, rapazes e moças jovens até conseguir minha redenção matinal. Mais uma hora de sono. Parecia sonho!
Como o único lugarzinho disponível era no corredor, meu sonho de ter mais uma hora de sono ruiu. A cada dois minutos de cochilo, seguiam-se cinco de esbarrões em minha perna esquerda. E mais três de sacoladas em meu rosto. Como uma estratégia para salvar meu sono, pedi as sacolas das duas meninas que estavam em pé ao meu lado. Eram muito magras e pareciam estar com dificuldades em carregar suas sacolas. Era uma troca justa: eu as livrava do peso e elas me livravam das sacoladas. Obviamente fui atendida.
Quase metade do meu caminho tinha passado, quando o senhor ao meu lado me acordou para poder descer. A chuva tinha dado uma trégua naquela parte da cidade. Pensei em como o senhor tinha sorte e duvidei da minha. Tinha certeza que estaria chovendo no meu ponto de descida.
O senhor desceu e ocupei seu lugar, na esperança de que nada mais me incomodasse na meia hora que restava. Uma das meninas tomou meu lugar e me lançou um olhar de súplica. Estranhei. Com a face ruborizada e tremendo muito, ela me perguntou:
- Será que a senhora poderia escrever um texto pra mim?
Hesitei por alguns momentos e analisei a situação. Pedido bizarro. A menina parecia ter entre treze e quinze anos e vestia roupas de grife, o que claramente mostrava que ela sabia escrever. Sua sacola tinha roupas apenas, não livros como supus antes de tomar a primeira sacolada. Parecia muito assustada e talvez até fugindo de algo. Minha primeira reação foi não me envolver.
- Desculpe querida, mas estou muito cansada e preciso descansar um pouco antes de chegar ao trabalho...
- Por favor, eu preciso escrever um texto, mas não pode ser com a minha letra...
- Por quê? – perguntei curiosa.
- Porque não quero que reconheçam minha caligrafia...
- Você fez alguma coisa errada, menina?! – me peguei tratando-a como minha filha. E afinal parecia mesmo. Tinha idade para tanto, físico para tanto. Lembro-me que foi com sua idade que vim morar na cidade grande.
- Me deixa explicar, senhora. Existe um site chamado www.postsecret.com, onde as pessoas expõem seus segredos de maneira anônima, deixando uma mensagem escrita à mão. Eu gostaria de expor meu segredo lá, mas tenho medo que alguém reconheça minha letra.
- Entendi... Mas as pessoas escrevem assim, prá todo mundo ver? – perguntei incrédula.
- Mas é anônimo...
- Mesmo assim! Segredos são segredos. Se você quer expor, provavelmente é porque isso te incomoda muito. E você não tem vergonha de me contar?
- A senhora tem razão. Realmente me incomoda. Mas não sei, vi na senhora um rosto amigo, familiar. Confiei na senhora no primeiro olhar. Realmente contar é uma coisa que vai me fazer melhor, pelo menos vai diminuir minha angústia.
O rosto da menina mudou. A tremedeira passou e ela parecia mais confiante. Resolvi ajudar.
- Tudo bem, eu escrevo o texto.
Pela primeira vez a menina abriu um sorriso e falou:
- É rápido, o texto é pequeno.
Aqueles foram os últimos momentos de paz naquele dia.
Ela começou a me contar seu segredo e a cada palavra era como se uma viagem no tempo ficasse mais próxima, e eu não conseguia escrever uma mísera palavra, e uma angústia tomava conta de mim. A cada pausa, minha perturbação aumentava. A menina falava em meu ouvido, sem olhar minhas mãos, inertes. Seu fôlego preenchia meus pensamentos e as frases iam se amontoando sem fazer sentido, apesar de claramente terem. A última frase me fez desabar totalmente, relembrando o momento em que decidi fugir de casa e vir para a cidade grande. Caí no choro e só conseguir lhe olhar nos olhos e dizer, sem ter escrito nada, mas marcada para sempre pela coincidência:
- Eu também, minha filha. Eu também...

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Muito prazer, Jorge.


- Nossa, que calor! – disse a senhora sentada duas cadeiras a minha frente, do outro lado. Realmente ela estava com a razão. 38°C apontava o termômetro da rua, pelo qual eu acabara de passar. Curioso é que os verões no Rio de Janeiro são bastante úmidos, e aquela senhora apresentava um cabelo impecavelmente esticado, graças, provavelmente, a mais poderosa “chapinha” do mercado. Nem nossa sabida umidade era capaz de desfazer seu belo penteado liso europeu. Coisas da tecnologia moderna... A senhora parecia daquelas pessoas pró-ativas, que acham que entendem tudo, falam eloqüentemente, mesmo sem saber. Daquelas que largam pérolas de sabedoria e fazem aspas com as mãos.
Estou indo para São Paulo. Meu nome é Jorge e tenho 34 anos. Sou recém casado e sou pai. Sim, sou pai de uma menina de 16. Por favor, não se espante, eu já fiquei o suficiente, já que não a conhecia e estou indo conhecê-la.
Débora foi filha de uma noite e uma história para a vida toda. Uma noite entre o filho da família de classe média e a babá de seus primos. Uma história de um homem que nunca imaginou ter um uma filha, ainda mais adolescente.
Mas, como organizar a aproximação? Como me portar diante daquela quase mulher, com seus anseios, sua criação diferente, seus valores não tão claros para mim? Definitivamente, muitas questões se avolumavam em minha cabeça enquanto o ônibus engolia o asfalto em direção à terra da garoa.
Apesar das dúvidas e questões importantes, não pude deixar de notar uma bela mulher sentada na primeira fileira. Era alta, esguia, bastante branca, com um sotaque paulista carregado. Encantador! Aparentava 30 anos. Talvez um pouco mais. Vestia um vestido que lhe deixava as costas à mostra e uns óculos vermelhos, que lhe davam um ar intelectual. Na entrada, ela ajudou uma família de seis pessoas que estava em dificuldades para achar seus assentos.
Apesar da bela visão inicial, era difícil me desvencilhar de tanta preocupação. Isso causou um efeito paradoxal em mim, me levando ao refúgio dos sonhos tranqüilos, que só nosso subconsciente pode nos dar em momentos de crise. E por algumas horas fui feliz e não tive dúvidas. Nem o calor conseguiu me conter. Apenas a menina com o sapato boneca roxo, assim como os lacinhos na cabeça, conseguiu.
A menina gritava como se seu dedão do pé estivesse sendo marretado. Seus berros ecoavam pelo ônibus de maneira grandiloqüente, levando quem estava a dormir placidamente a acordar num grande sobressalto. Os berros foram seguidos de socos na avó, mordidas na mãe, palavras de baixo calão, solavancos na cadeira da frente, lágrimas das três. Nunca vou entender tamanho desespero.
Em meio às crianças que riam e se divertiam com a cena grotesca de bullying entre a menina de sapato boneca e lacinhos roxos, sua mãe e a avó, o filho da moça de cabelos esticados, começou a passar mal. Ele vestia uma camisa falsificada do Flamengo, um boné para trás e uma corrente no pescoço, no melhor estilo rapper americano. Sua face empalideceu e só se viu sua sombra correndo em direção ao banheiro. Seu rosto estava banhado de suor na volta.
A menina de sapato boneca e lacinhos roxos continuava seu show particular. Agora, vociferando claramente que queria descer do ônibus, ir embora. Nem havíamos saído do Rio de Janeiro ainda... Será que Débora tinha sido assim? Foi quando a bela moça esguia, que estava sem sutiã, apareceu com um suco AdeS de maçã e o entregou à pequena barraqueira. A impressão foi a de que havia toneladas de sedativos naquele suco, tamanho foi o silêncio feito em poucos minutos. A menininha agora jazia calmamente nos braços da mãe, abraçada a uma almofada de coração. Espero que Débora se torne esse tipo de mulher: a que sempre tem um AdeS de maçã para as horas difíceis.
A senhora com o cabelo esticado aproveitou o silêncio e começou a falar com a mãe da menina:
- Olha senhora, nós passageiros entendemos perfeitamente. Não fique constrangida. Não fique achando que a senhora nos atrapalhou. Nós passageiros entendemos... – Também se virava para o filho, ainda nauseado, e dizia:
- Isso é falta de Jesus. Eu era assim também, desesperada. Você não lembra? – Sem deixar tempo para o menino responder, emendou:
- Eu era uma desesperada, mas agora minha vida foi salva por Jesus. Você tem que ouvir meu filho, você tem que ir à igreja comigo. - Se virando para a mãe da menina de novo, disse:
- Vocês são crentes?
Ao que a mãe da menina acenou com a cabeça.
- Então vocês estão indo na igreja errada! Vocês têm que ir à minha igreja, porque lá nos fazemos este tipo de milagres! Essa menina está com o inimigo perto dela! – E começou a rezar baixinho. A mãe, constrangida, a acompanhou na oração, junto com a avó também.
Do meu lado, um senhor tentava abrir uma garrafa de água. Parecia um trabalho bem simples, mas ele estava tendo dificuldades. Ao perceber que me apresentaria para ajudá-lo, o moço sacou uma bela faca, como a de Crocodilo Dundee, e começou a retirar a tampa da garrafa de água de 500mL com a faca. A senhora do cabelo esticado continua falando e percebi seu sotaque nordestino, assim como o do senhor ao meu lado, que me perguntou se eu poderia levantar para que ele fosse ao banheiro.
Ao voltar do banheiro, o senhor encostou-se à poltrona já reclinada e dormiu como se tivesse tomado o AdeS de maçã. Seu ronco podia ser ouvido como os berros da menina de lacinhos e sapato boneca roxos. Mas nada me incomodaria mais. Dormi junto com o senhor, até a parada.
O ônibus sacudiu e freou, anunciando o lanchinho que se aproximava. Sim, eram 3 da tarde e possivelmente todos nós sentíamos fome. Talvez uns mais, outros menos. O rapaz ao meu lado, com uma bandeira do Brasil tatuada no braço, aparentemente pertencia ao primeiro grupo. Ao ver a menina de lacinhos e sapato boneca roxos descendo, fiquei apreensivo. “Meu Deus, ela acordou!” pensei. Mas, para minha surpresa, nada mais incomodou a menina. O que incomodou foi uma senhora que resolveu almoçar dentro do ônibus. Sua quentinha cheirava deliciosamente. E teríamos que lidar com o cheiro pelas próximas três horas.
As três horas até que passaram rapidamente, levando-se em consideração o dilúvio que caiu na estrada e o medo que se apossou de mim. É, eu senti medo da chuva. Mas o mais curioso é que viajar de ônibus foi uma decisão baseada no medo. No meu medo de voar.
Mas a vida é curiosa e às vezes nos prega peças. Foi quase chegando a São Paulo que tive um grande insight. As horas no ônibus me fizeram pensar sobre a situação que se aproximava. “Aproximação” era a palavra do momento na minha cabeça. Como eu deveria fazer? Meu cérebro bolou uma maneira peculiar.
Existe maneira melhor de se expor do que escrever? Existe maneira melhor de mostrar quem você é, do que colocar no papel o que você sente? Provavelmente exista, sim. Para Van Gogh era a pintura. Para James Joyce não. Mas para Da Vinci era todas as maneiras possíveis. Querida Débora, você não sabe, mas sou um pretenso escritor. Logo, meu cérebro pensou o seguinte: não há maneira melhor de se aproximar do que se mostrar, do que se expor. Cartesianamente pensando, aqui estou, Débora. Muito prazer, meu nome é Jorge, tenho 34 anos e sou seu pai. Seja bem-vinda ao meu cérebro.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Meu nome é Aurélio!

Meu nome é Aurélio, o único nome da língua portuguesa que possui as cinco vogais. Sem repetir! Aureliano também possui as cinco vogais, mas o “a” se repete. Pelo menos assim eu achava...
Aurélio era o nome de meu pai. Talvez essa seja a razão pela qual os nomes estranhos nunca morrem. Há sempre alguém disposto a homenagear um tio chamado Domóstenes. Ou Euclides. Ou Valdemar. Tenho um amigo, que tem uma irmã, que tem um amigo cujo nome é Lorestin. Lorestin Bisneto! Como falei, há sempre alguém disposto a homenagens... No meu caso, acredito ter dado sorte por meu pai ser apenas Aurélio. O único nome que possui as cinco vogais, sem repetir.
Cresci ouvindo isso. Na verdade, quando me dei conta que meu nome era totalmente diferente do nome das outras crianças e que não havia (nem nunca haveria) outro Aurélio, acabei por implicar com meu nome. Era naquela época também o nome do dicionário mais vendido. Imagina eu, um dicionário? Eu poderia ter sido um Bruno, um Leonardo ou um Felipe. Mas as malditas homenagens... Nem servia para eu ser o primeiro da chamada. Sempre tinha uma Ana ou um André. Às vezes um Alberto. Logo, até nisso fiquei para trás. Meu pai sempre tentou minimizar a situação e trazer o lado bom dessa situação. Ouvi essa história das cinco vogais durante quinze anos. Até o dia em que ele morreu e eu fiquei sendo o único Aurélio da minha casa.
Um pouco antes disso, eu fui estudar num colégio diferente. Por uma dessas sortes que se dá poucas vezes na vida, fiquei sendo conhecido pelo meu sobrenome. Magalhães. Ok, ficou melhor. Com o tempo, acabei virando o Magal. Maguito às vezes também. Mas fundamentalmente Magal. Eu adorava! Chega de Aurélio!
Meus amigos sempre souberam da peculiaridade do meu nome. Alguns deles pegavam carona com meu pai com mais freqüência, como o Gustavo, Mario, Marquinhos e o Tiago (aliás, Bandeira. Viva os sobrenomes!). Como éramos todos reféns da carona do meu pai, todos ouvíamos as histórias por trás do pomposo nome Aurélio. Logo, o fato das cinco vogais do meu nome era de domínio público. A cada vez que eu me apresentava, especialmente para garotas, ouvia-se o coro, uníssono: “Aurélio é o único nome da língua portuguesa que tem as cinco vogais sem repetir. Aureliano tem também, mas repete o “a””.
Durante anos foi assim.
Até que um dia não foi mais.
O ano era 1995. Eu passava o natal daquele ano na casa do Bandeira e éramos provavelmente uns doze rapazes entre 15 e 21 anos. Alguns com namoradas, outros não. E foi uma dessas namoradas que acabou com a mística do nome Aurélio. Luciana era seu nome.
A meia-noite já havia passado há muito e as cervejas ainda desciam redondamente pelas gargantas dos ávidos adolescentes, quando Vitor chegou à festa acompanhado por sua namorada Luciana. Vítor tinha um irmão gêmeo e era namorado de Luciana havia uns anos. Talvez um ano. Fato é que Luciana era muito tímida e raramente falava alguma coisa. Muda praticamente. Muito tímida. Os protocolos foram seguidos e fomos apresentados formalmente. Bandeira, o anfitrião, fez as honras:
- Luciana, esse aqui é o Magal. O nome dele é Aurélio... – E o coro continuou:
- ... o único nome da língua portuguesa que possui as cinco vogais sem repetir, porque Aureliano repete!
A gargalhada foi generalizada. Luciana, tímida, meio sem graça, apenas esboçou um tímido sorriso.
Não se passaram mais do que quinze minutos, para se ouvir uma gargalhada num canto da sala. Era Vitor. Nada de anormal. Acontece que a gargalhada ficou mais intensa, Vitor começou a ficar vermelho, seu dermografismo saltou aos olhos e Vitor já não conseguia mais se controlar. Luciana num canto, constrangida, também sorria. Mas um sorriso de culpa. Sentia-se mal.
Vitor não se continha e atraía todas as atenções. Ele não conseguia controlar o riso, nem o próprio corpo e balbuciava uma palavra sem nexo. E repetia essa palavra exaustivamente e continuava rindo, apontando para mim e rindo. Luciana tentava acalmar o namorado. Mas era em vão. Vitor caiu no chão e não se conteve. Lágrimas rolavam de seus olhos e gargalhadas de sua boca.
Até que, como que por encanto, Vitor conseguiu falar algo com nexo:
- A família dela tem um monte de nomes estranhos... – E apontou para Luciana, ainda completamente fora de si. Gargalhava e repetia:
- Caiu um mito, caiu um mito, caiu um mito!
Todos estavam curiosos. Foi quando ele falou:
- Claudemiro!!! Claudemiro!!! Claudemiro, porra!!!
Houve um silêncio sepulcral. Todos ouviram aquele nome e começaram a se perguntar:
- E daí?
- E daí? Porra, Claudemiro! C-L-A-U-D-E-M-I-R-O!!!
Foi o Gustavo que pescou:
- Caralho, tem as cinco vogais...
O silêncio se aprofundou. Todos se entreolhavam incrédulos. Até que eu mesmo irrompi numa grande risada. Inevitavelmente fui seguido por todos. Gargalhamos todos por uns cinco minutos. E ainda rimos dessa história.
Hoje em dia, ainda me apresento como Aurélio. Mas não digo mais que meu nome é o único com as cinco vogais sem repetir. Agora digo que é o mais bonito nome da língua portuguesa, que possui as cinco vogais sem repetir, visto que Aureliano repete e Claudemiro é feio...

sábado, 2 de janeiro de 2010

Os dois textos abaixo são relacionados. Talvez seja mais interessante ler "A cerimônia" primeiro e depois "O discurso de Leonardo". Mas isso é só minha opinião...
A cerimônia

O apresentador da cerimônia falou:
- Leonardo José Macedo Alves.
Não lembrava qual era a música que tocou depois do nome de Leonardo ser chamado, mas era um rock pesado. Daqueles que eu ouvia quando era adolescente, recém chegado ao Rio de Janeiro. Naquela época, o quartel era a grande saída para pessoas vindas do norte e do nordeste, como eu. Vivíamos a ditadura militar e era grande o prestígio e o poder das forças armadas. E meus amigos do quartel gostavam muito deste tipo de rock. Não sabia que meu filho gostava dela assim, a ponto de ser lembrado em sua formatura por tal música.
Após o chamado do apresentador, minha mulher, meus outros dois filhos e meu irmão Pedro, se levantaram e aplaudiram Leonardo, como, aliás, todo o auditório. Todo, menos eu. Não conseguia. Naquele momento, começou a passar o filme de minha vida em minha cabeça e me transportei à Bahia.
O ano era 1952 e aquele verão até que foi ameno. Eu era o terceiro filho de seis. Dos meus dois irmãos mais velhos, um já tinha morrido de barriga d’água; o outro tinha ido morar com uma tia na cidade vizinha. Invariavelmente passávamos fome, especialmente à noite, e eu tinha que olhar meus outros três irmãos.
Numa destas noites, com papai ainda na roça e mamãe terminando o jantar, Pedro, meu irmão logo abaixo de mim, me confidenciou:
- Eu quero fugir!
- Fugir pra onde?
- Não sei, só sei que eu quero trabalhar, prá ganhar meu dinheiro e não precisar mais dividir minha comida com ninguém!
Uma semana depois, Pedro fugiu (sua história de vida daria um livro inteiro e não somente um conto mal escrito, como a minha). E aquele fato ficou na minha cabeça por muito tempo, acabando por me motivar a também a sair daquela situação. Reencontrei Pedro vinte e sete anos depois e dei meu pequeno Leonardo para ele batizar. Pedro, meu irmão mais novo, foi meu grande exemplo.
Caí em mim de novo e olhei para o lado. Vi Pedro orgulhoso do afilhado, com uma expressão de vitória no rosto. A mesma que vi quando do nosso reencontro. Vitória sobre o destino. Vitória sobre a inércia da vida. Pedro começou como servente de uma editora de livros médicos e hoje é dono desta editora.
Agora éramos os únicos ainda vivos dos sete, sobreviventes daqueles tempos. Minha mãe morrera havia seis meses, meu pai e outros irmãos havia muitos anos. As coisas tinham mudado muito. Não passávamos mais fome, vivíamos sob os auspícios do grande Pedro em casas confortáveis e com comida farta.
A cerimônia seguiu com mais alguns formandos sendo chamados, até que chegou na hora das homenagens. Professores, pacientes, funcionários, pais ausentes... Realmente é um momento emocionante, lembrei da falta que meus pais me fizeram quando cheguei aqui, quase como um refugiado de guerra, vindo do sertão. O exército me deu a chance de não morrer de fome e de aprender uma profissão. Por sorte, fui servir no HCE (Hospital Central do Exército) e acabei ficando muito próximo do que sempre quis. Desde criança eu tinha um sonho: queria ser médico. Eu tratava das galinhas lá de casa, fazia autópsias em sapos, aplicava injeções em laranjas... Acabei me formando técnico em enfermagem e instrumentador cirúrgico. Naquele momento, o exército era o meu “pai” ausente e me emocionei como uma senhora ao meu lado.
Eu nunca fui muito próximo a Leonardo. Não sabia muito bem seus gostos, com quantas mulheres havia se deitado, seus autores favoritos. Sempre precisei trabalhar muito, de sol a sol, pois não queria uma vida igual à minha para meus filhos. Sabe, é aquela sensação: você sai da seca, mas a seca nunca sai de você. Você sempre acha que um dia aquilo tudo de bom que você tem vai acabar, como num passe de mágica, e você vai abrir os olhos e o Sol estará te castigando. É por isso também que eu odeio amarelo. Nada é mais seco do que o amarelo. Amarelo Sol, amarelo barro, amarelo fel. Logo, a única saída é fazer o máximo enquanto há tempo e forças para isso. Nem que isso signifique a distância dos filhos e da família.
Foi uma grande surpresa para mim quando soube que Leonardo seria o orador da turma. O vestibular já tinha sido um grande feito, obviamente, e sua trajetória brilhante na faculdade de medicina também. Mas ser o orador, ter escrito o texto final de sua formatura, realmente era uma coisa inusitada para este pai. E foi quando chamaram seu nome, para falar em nome da turma, que meu estômago ficou pequenino, meus olhos encharcaram, minha mente enegreceu e eu me senti escorrendo pela cadeira. Meu filho, filho de um retirante, orador de uma turma de médicos.
O discurso começou assim: “Eu cheguei até aqui por causa dos meus pais. Acredito que boa parte dos meus queridos amigos formandos de hoje também. São nossos pais que fundamentam nosso caminho, nos dão ferramentas para lutar e nos dão o colo para descansar. São eles o início de tudo.”. Foi um golpe certeiro no meu autocontrole. Lembrei-me de uma das poucas vezes em que lemos algo juntos. Naquele dia, a última cirurgia do dia fora suspensa e eu cheguei em casa pouco antes das dez da noite. Ainda a tempo de contar uma história antes de Leonardo dormir. Sentei-me ao seu lado, puxei um livro da escrivaninha e comecei a ler. Era “Reinações de Narizinho”. Monteiro Lobato era minha leitura favorita quando criança. Não foram mais do que quinze minutos até Leonardo dormir, e eu a chorar. A vida me massacrava. Fisicamente e psicologicamente. Hoje, com meu filho no alto do palco falando para uma platéia de pessoas com instrução, vejo que o sacrifício valeu. Na época eu não sabia se valeria. Eu tinha dúvidas relacionadas a mim, às minhas escolhas e ao mundo em volta de mim.
O discurso seguiu, falando dessa vez sobre “se tornar adulto”. Eis o trecho: “No fundo é isso o que acontece quando entramos na faculdade: começamos a deixar de ser dependentes. O fim da faculdade encerra um ciclo e inicia outro. Para alguns, o último. Tornamo-nos adultos. De certa maneira, se tornar adulto é apenas mais uma dificuldade dessa estrada. Mas certamente a mais dolorosa.”. Eu ME lembro quando virei adulto. Foi doloroso quando, ainda criança, cuidando de meu irmão, sonhando com um pedaço maior de carne, meu pai morreu. Pedro já tinha fugido e o menor já tinha morrido. Ficamos apenas três, dos nove. Minha mãe virou-se pra mim e falou: “Você agora é o homem da casa”. E foi aí que a vida começou seu massacre comigo.
Não sei se todos ali presentes tinham uma história como a minha, certamente não. Alguns provavelmente com uma história pior, outros não. Neste exato instante, Leonardo falou uma frase que eu costumava ouvir de um grande anestesiologista amigo meu, Dr. Wagner, e que lhe disse no dia que ele entrou na faculdade: “O bom médico traz consigo três C’s: competência, compaixão e compromisso.”. Ali vi minha missão cumprida. Todo o sacrifício se transformou numa família unida, feliz, realizada e orgulhosa do que viveu. Olhei para o lado e vi Pedro, minha mulher e meus outros dois filhos mais novos. Todos com uma expressão de vitória no rosto. A vida tinha me massacrado, nos massacrado, mas nós tínhamos vencido a vida.
O discurso de Leonardo

Eu cheguei até aqui por causa dos meus pais. Acredito que boa parte dos meus queridos amigos formandos de hoje também. São nossos pais que fundamentam nosso caminho, nos dão ferramentas para lutar e nos dão o colo para descansar. São eles o início de tudo.
Lembro-me bem do primeiro dia de aula, da insegurança que sentia, do “frio na barriga” do desconhecido, do medo dos veteranos. Mas aos poucos isso passou. Eu dominei meus medos, conquistei meu lugar. Tenho certeza de que foi assim com todos aqui. O início é duro. Temos que estudar e aprender coisas que nunca ouvimos falar, estudar de uma maneira diferente e menos dependente. No fundo é isso o que acontece quando entramos na faculdade: começamos a deixar de ser dependentes. O fim da faculdade encerra um ciclo e inicia outro. Para alguns, o último. Tornamo-nos adultos.
De certa maneira, se tornar adulto é apenas mais uma dificuldade dessa estrada. Mas certamente a mais dolorosa. E é isso que nos espera em muitos momentos: dor. Dor e medo. Dor, medo e insegurança. Certamente não é só isso, mas é isso o que nos deixa abalados. O medo de errar, insegurança com o primeiro doente, a dor da primeira perda. Acontecerá com TODOS. Mas é por isso que estamos aqui hoje. Foi para isso que chegamos até aqui. Estudamos seis anos para isso. Para que a dor, o medo e a insegurança que encontraremos fiquem em seus lugares, visto que são necessários. Que a insegurança seja tolerável e nos torne humildes, que a dor seja apenas um alarme, que o medo seja o impulso para o aprimoramento.
Sejamos médicos de corpo e alma. Afinal, medicina é sim sacerdócio. É o mais próximo do sobrenatural que um homem comum pode chegar. É arte, no sentido que a palavra conota, visto fazer emocionar, trazer felicidade e vida ao homem. Portanto, sejamos bons!
Uma vez me disseram que o bom médico trazia consigo três C’s: competência, compaixão e compromisso. Eu acrescento mais um: coragem. Competência, porque é o mínimo. Compaixão, porque devemos isso à humanidade: não esqueçamos que tratamos de semelhantes. Compromisso, porque fizemos um juramento. Coragem para enfrentar os males da profissão e as armadilhas da dura vida que levaremos daqui para frente.
Espero que não falte nenhum destes C’s a nós, companheiros, e que os dias de alegria sejam inspiradores, que os de tristeza façam refletir e que tenhamos saúde, felicidade e sorte ao longo da nossa jornada aqui na Terra. Obrigado e boa noite a todos.