sábado, 2 de janeiro de 2010

A cerimônia

O apresentador da cerimônia falou:
- Leonardo José Macedo Alves.
Não lembrava qual era a música que tocou depois do nome de Leonardo ser chamado, mas era um rock pesado. Daqueles que eu ouvia quando era adolescente, recém chegado ao Rio de Janeiro. Naquela época, o quartel era a grande saída para pessoas vindas do norte e do nordeste, como eu. Vivíamos a ditadura militar e era grande o prestígio e o poder das forças armadas. E meus amigos do quartel gostavam muito deste tipo de rock. Não sabia que meu filho gostava dela assim, a ponto de ser lembrado em sua formatura por tal música.
Após o chamado do apresentador, minha mulher, meus outros dois filhos e meu irmão Pedro, se levantaram e aplaudiram Leonardo, como, aliás, todo o auditório. Todo, menos eu. Não conseguia. Naquele momento, começou a passar o filme de minha vida em minha cabeça e me transportei à Bahia.
O ano era 1952 e aquele verão até que foi ameno. Eu era o terceiro filho de seis. Dos meus dois irmãos mais velhos, um já tinha morrido de barriga d’água; o outro tinha ido morar com uma tia na cidade vizinha. Invariavelmente passávamos fome, especialmente à noite, e eu tinha que olhar meus outros três irmãos.
Numa destas noites, com papai ainda na roça e mamãe terminando o jantar, Pedro, meu irmão logo abaixo de mim, me confidenciou:
- Eu quero fugir!
- Fugir pra onde?
- Não sei, só sei que eu quero trabalhar, prá ganhar meu dinheiro e não precisar mais dividir minha comida com ninguém!
Uma semana depois, Pedro fugiu (sua história de vida daria um livro inteiro e não somente um conto mal escrito, como a minha). E aquele fato ficou na minha cabeça por muito tempo, acabando por me motivar a também a sair daquela situação. Reencontrei Pedro vinte e sete anos depois e dei meu pequeno Leonardo para ele batizar. Pedro, meu irmão mais novo, foi meu grande exemplo.
Caí em mim de novo e olhei para o lado. Vi Pedro orgulhoso do afilhado, com uma expressão de vitória no rosto. A mesma que vi quando do nosso reencontro. Vitória sobre o destino. Vitória sobre a inércia da vida. Pedro começou como servente de uma editora de livros médicos e hoje é dono desta editora.
Agora éramos os únicos ainda vivos dos sete, sobreviventes daqueles tempos. Minha mãe morrera havia seis meses, meu pai e outros irmãos havia muitos anos. As coisas tinham mudado muito. Não passávamos mais fome, vivíamos sob os auspícios do grande Pedro em casas confortáveis e com comida farta.
A cerimônia seguiu com mais alguns formandos sendo chamados, até que chegou na hora das homenagens. Professores, pacientes, funcionários, pais ausentes... Realmente é um momento emocionante, lembrei da falta que meus pais me fizeram quando cheguei aqui, quase como um refugiado de guerra, vindo do sertão. O exército me deu a chance de não morrer de fome e de aprender uma profissão. Por sorte, fui servir no HCE (Hospital Central do Exército) e acabei ficando muito próximo do que sempre quis. Desde criança eu tinha um sonho: queria ser médico. Eu tratava das galinhas lá de casa, fazia autópsias em sapos, aplicava injeções em laranjas... Acabei me formando técnico em enfermagem e instrumentador cirúrgico. Naquele momento, o exército era o meu “pai” ausente e me emocionei como uma senhora ao meu lado.
Eu nunca fui muito próximo a Leonardo. Não sabia muito bem seus gostos, com quantas mulheres havia se deitado, seus autores favoritos. Sempre precisei trabalhar muito, de sol a sol, pois não queria uma vida igual à minha para meus filhos. Sabe, é aquela sensação: você sai da seca, mas a seca nunca sai de você. Você sempre acha que um dia aquilo tudo de bom que você tem vai acabar, como num passe de mágica, e você vai abrir os olhos e o Sol estará te castigando. É por isso também que eu odeio amarelo. Nada é mais seco do que o amarelo. Amarelo Sol, amarelo barro, amarelo fel. Logo, a única saída é fazer o máximo enquanto há tempo e forças para isso. Nem que isso signifique a distância dos filhos e da família.
Foi uma grande surpresa para mim quando soube que Leonardo seria o orador da turma. O vestibular já tinha sido um grande feito, obviamente, e sua trajetória brilhante na faculdade de medicina também. Mas ser o orador, ter escrito o texto final de sua formatura, realmente era uma coisa inusitada para este pai. E foi quando chamaram seu nome, para falar em nome da turma, que meu estômago ficou pequenino, meus olhos encharcaram, minha mente enegreceu e eu me senti escorrendo pela cadeira. Meu filho, filho de um retirante, orador de uma turma de médicos.
O discurso começou assim: “Eu cheguei até aqui por causa dos meus pais. Acredito que boa parte dos meus queridos amigos formandos de hoje também. São nossos pais que fundamentam nosso caminho, nos dão ferramentas para lutar e nos dão o colo para descansar. São eles o início de tudo.”. Foi um golpe certeiro no meu autocontrole. Lembrei-me de uma das poucas vezes em que lemos algo juntos. Naquele dia, a última cirurgia do dia fora suspensa e eu cheguei em casa pouco antes das dez da noite. Ainda a tempo de contar uma história antes de Leonardo dormir. Sentei-me ao seu lado, puxei um livro da escrivaninha e comecei a ler. Era “Reinações de Narizinho”. Monteiro Lobato era minha leitura favorita quando criança. Não foram mais do que quinze minutos até Leonardo dormir, e eu a chorar. A vida me massacrava. Fisicamente e psicologicamente. Hoje, com meu filho no alto do palco falando para uma platéia de pessoas com instrução, vejo que o sacrifício valeu. Na época eu não sabia se valeria. Eu tinha dúvidas relacionadas a mim, às minhas escolhas e ao mundo em volta de mim.
O discurso seguiu, falando dessa vez sobre “se tornar adulto”. Eis o trecho: “No fundo é isso o que acontece quando entramos na faculdade: começamos a deixar de ser dependentes. O fim da faculdade encerra um ciclo e inicia outro. Para alguns, o último. Tornamo-nos adultos. De certa maneira, se tornar adulto é apenas mais uma dificuldade dessa estrada. Mas certamente a mais dolorosa.”. Eu ME lembro quando virei adulto. Foi doloroso quando, ainda criança, cuidando de meu irmão, sonhando com um pedaço maior de carne, meu pai morreu. Pedro já tinha fugido e o menor já tinha morrido. Ficamos apenas três, dos nove. Minha mãe virou-se pra mim e falou: “Você agora é o homem da casa”. E foi aí que a vida começou seu massacre comigo.
Não sei se todos ali presentes tinham uma história como a minha, certamente não. Alguns provavelmente com uma história pior, outros não. Neste exato instante, Leonardo falou uma frase que eu costumava ouvir de um grande anestesiologista amigo meu, Dr. Wagner, e que lhe disse no dia que ele entrou na faculdade: “O bom médico traz consigo três C’s: competência, compaixão e compromisso.”. Ali vi minha missão cumprida. Todo o sacrifício se transformou numa família unida, feliz, realizada e orgulhosa do que viveu. Olhei para o lado e vi Pedro, minha mulher e meus outros dois filhos mais novos. Todos com uma expressão de vitória no rosto. A vida tinha me massacrado, nos massacrado, mas nós tínhamos vencido a vida.

5 comentários:

  1. Muito interessante essa associação entre o Ausente e a caserna. Sempre achei isso e essa associação existia de fato para mim. Mas o que mais me impressionou foi a composição do personagem "pai do Leonardo". Muitos elementos fortes ali.

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  2. A riquesa e beleza desse texto me impressionam. Me senti envolvida pelo personagem e pelas emoções abordadas por ele. Adorei o jogo com a cor amarela e como nos faz ver e sentir a "seca" do pai de Leonardo: a amargura, o cansaço de quem viveu uma vida dura, mas q no fim pode se considerar vencedor.
    Vc se superou desta vez.

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  3. Flavio, os elementos estão aí. Seja na vó do espeto, no meu pai, no meu avô... Essa coisa de vir de longe e se virar é bem presente.

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  4. Najah, como sempre gentil e doce. Como diria Fabio Jr: "'Brigadú!".

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  5. Epoca de formatura passa um filme na mente... Eu falei a msg final da minha colacao... Na hora sao tantos sentimentos juntos que nem reparei o significado de td aquilo rs... E tudo e tao intenso e cheio de lembrancas misturadas a sonhos e expextativas... Nossa! Que epoca boa! Sempre que o dia a dia nos afastar dos nossos objetivos e nos fizer desanimar por inumeros problemas q temos. Devemos lembrar desse dia... De td q foi necessario... De td o esforco... De tds os envolvidos...

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