sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Muito prazer, Jorge.


- Nossa, que calor! – disse a senhora sentada duas cadeiras a minha frente, do outro lado. Realmente ela estava com a razão. 38°C apontava o termômetro da rua, pelo qual eu acabara de passar. Curioso é que os verões no Rio de Janeiro são bastante úmidos, e aquela senhora apresentava um cabelo impecavelmente esticado, graças, provavelmente, a mais poderosa “chapinha” do mercado. Nem nossa sabida umidade era capaz de desfazer seu belo penteado liso europeu. Coisas da tecnologia moderna... A senhora parecia daquelas pessoas pró-ativas, que acham que entendem tudo, falam eloqüentemente, mesmo sem saber. Daquelas que largam pérolas de sabedoria e fazem aspas com as mãos.
Estou indo para São Paulo. Meu nome é Jorge e tenho 34 anos. Sou recém casado e sou pai. Sim, sou pai de uma menina de 16. Por favor, não se espante, eu já fiquei o suficiente, já que não a conhecia e estou indo conhecê-la.
Débora foi filha de uma noite e uma história para a vida toda. Uma noite entre o filho da família de classe média e a babá de seus primos. Uma história de um homem que nunca imaginou ter um uma filha, ainda mais adolescente.
Mas, como organizar a aproximação? Como me portar diante daquela quase mulher, com seus anseios, sua criação diferente, seus valores não tão claros para mim? Definitivamente, muitas questões se avolumavam em minha cabeça enquanto o ônibus engolia o asfalto em direção à terra da garoa.
Apesar das dúvidas e questões importantes, não pude deixar de notar uma bela mulher sentada na primeira fileira. Era alta, esguia, bastante branca, com um sotaque paulista carregado. Encantador! Aparentava 30 anos. Talvez um pouco mais. Vestia um vestido que lhe deixava as costas à mostra e uns óculos vermelhos, que lhe davam um ar intelectual. Na entrada, ela ajudou uma família de seis pessoas que estava em dificuldades para achar seus assentos.
Apesar da bela visão inicial, era difícil me desvencilhar de tanta preocupação. Isso causou um efeito paradoxal em mim, me levando ao refúgio dos sonhos tranqüilos, que só nosso subconsciente pode nos dar em momentos de crise. E por algumas horas fui feliz e não tive dúvidas. Nem o calor conseguiu me conter. Apenas a menina com o sapato boneca roxo, assim como os lacinhos na cabeça, conseguiu.
A menina gritava como se seu dedão do pé estivesse sendo marretado. Seus berros ecoavam pelo ônibus de maneira grandiloqüente, levando quem estava a dormir placidamente a acordar num grande sobressalto. Os berros foram seguidos de socos na avó, mordidas na mãe, palavras de baixo calão, solavancos na cadeira da frente, lágrimas das três. Nunca vou entender tamanho desespero.
Em meio às crianças que riam e se divertiam com a cena grotesca de bullying entre a menina de sapato boneca e lacinhos roxos, sua mãe e a avó, o filho da moça de cabelos esticados, começou a passar mal. Ele vestia uma camisa falsificada do Flamengo, um boné para trás e uma corrente no pescoço, no melhor estilo rapper americano. Sua face empalideceu e só se viu sua sombra correndo em direção ao banheiro. Seu rosto estava banhado de suor na volta.
A menina de sapato boneca e lacinhos roxos continuava seu show particular. Agora, vociferando claramente que queria descer do ônibus, ir embora. Nem havíamos saído do Rio de Janeiro ainda... Será que Débora tinha sido assim? Foi quando a bela moça esguia, que estava sem sutiã, apareceu com um suco AdeS de maçã e o entregou à pequena barraqueira. A impressão foi a de que havia toneladas de sedativos naquele suco, tamanho foi o silêncio feito em poucos minutos. A menininha agora jazia calmamente nos braços da mãe, abraçada a uma almofada de coração. Espero que Débora se torne esse tipo de mulher: a que sempre tem um AdeS de maçã para as horas difíceis.
A senhora com o cabelo esticado aproveitou o silêncio e começou a falar com a mãe da menina:
- Olha senhora, nós passageiros entendemos perfeitamente. Não fique constrangida. Não fique achando que a senhora nos atrapalhou. Nós passageiros entendemos... – Também se virava para o filho, ainda nauseado, e dizia:
- Isso é falta de Jesus. Eu era assim também, desesperada. Você não lembra? – Sem deixar tempo para o menino responder, emendou:
- Eu era uma desesperada, mas agora minha vida foi salva por Jesus. Você tem que ouvir meu filho, você tem que ir à igreja comigo. - Se virando para a mãe da menina de novo, disse:
- Vocês são crentes?
Ao que a mãe da menina acenou com a cabeça.
- Então vocês estão indo na igreja errada! Vocês têm que ir à minha igreja, porque lá nos fazemos este tipo de milagres! Essa menina está com o inimigo perto dela! – E começou a rezar baixinho. A mãe, constrangida, a acompanhou na oração, junto com a avó também.
Do meu lado, um senhor tentava abrir uma garrafa de água. Parecia um trabalho bem simples, mas ele estava tendo dificuldades. Ao perceber que me apresentaria para ajudá-lo, o moço sacou uma bela faca, como a de Crocodilo Dundee, e começou a retirar a tampa da garrafa de água de 500mL com a faca. A senhora do cabelo esticado continua falando e percebi seu sotaque nordestino, assim como o do senhor ao meu lado, que me perguntou se eu poderia levantar para que ele fosse ao banheiro.
Ao voltar do banheiro, o senhor encostou-se à poltrona já reclinada e dormiu como se tivesse tomado o AdeS de maçã. Seu ronco podia ser ouvido como os berros da menina de lacinhos e sapato boneca roxos. Mas nada me incomodaria mais. Dormi junto com o senhor, até a parada.
O ônibus sacudiu e freou, anunciando o lanchinho que se aproximava. Sim, eram 3 da tarde e possivelmente todos nós sentíamos fome. Talvez uns mais, outros menos. O rapaz ao meu lado, com uma bandeira do Brasil tatuada no braço, aparentemente pertencia ao primeiro grupo. Ao ver a menina de lacinhos e sapato boneca roxos descendo, fiquei apreensivo. “Meu Deus, ela acordou!” pensei. Mas, para minha surpresa, nada mais incomodou a menina. O que incomodou foi uma senhora que resolveu almoçar dentro do ônibus. Sua quentinha cheirava deliciosamente. E teríamos que lidar com o cheiro pelas próximas três horas.
As três horas até que passaram rapidamente, levando-se em consideração o dilúvio que caiu na estrada e o medo que se apossou de mim. É, eu senti medo da chuva. Mas o mais curioso é que viajar de ônibus foi uma decisão baseada no medo. No meu medo de voar.
Mas a vida é curiosa e às vezes nos prega peças. Foi quase chegando a São Paulo que tive um grande insight. As horas no ônibus me fizeram pensar sobre a situação que se aproximava. “Aproximação” era a palavra do momento na minha cabeça. Como eu deveria fazer? Meu cérebro bolou uma maneira peculiar.
Existe maneira melhor de se expor do que escrever? Existe maneira melhor de mostrar quem você é, do que colocar no papel o que você sente? Provavelmente exista, sim. Para Van Gogh era a pintura. Para James Joyce não. Mas para Da Vinci era todas as maneiras possíveis. Querida Débora, você não sabe, mas sou um pretenso escritor. Logo, meu cérebro pensou o seguinte: não há maneira melhor de se aproximar do que se mostrar, do que se expor. Cartesianamente pensando, aqui estou, Débora. Muito prazer, meu nome é Jorge, tenho 34 anos e sou seu pai. Seja bem-vinda ao meu cérebro.

2 comentários:

  1. Caraca! Tive taquicardia nas últimas linhas. O problema de se expressar tem soluções mais simples do que se pode imaginar, não é mesmo?

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  2. Não é simples não... hehehe
    Quase sempre dói prá caramba!

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