quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Viagem no tempo

A água fervia e eu me preparava para fazer o café naquela manhã de inverno. Chovia. Arthur ainda não tinha acordado, visto que chegara tarde do futebol da noite anterior. Eu também tinha ido dormir tarde. Seguia meu mais novo vício: internet. Vinha descobrindo as maravilhas dos chats e bisbilhotando a vida dos outros no Orkut. Os meninos ainda estavam no banho e eu já estava atrasada. Ainda não muito, mas atrasada. Certamente o trânsito não seria minha madrinha e meu chefe produziria um daqueles espetáculos grotescos de grosseria. Meu dia estava começando bem. Entrei no banho correndo, arrumei os meninos para o ônibus e acordei Arthur, também atrasado. Mal deu tempo de comer algo, mas pelo menos o café desceu bem. Belo alívio.
O caminho até o ponto foi percorrido entre desvios de poças, brigas com o guarda-chuva e pequenas corridas para ver se ainda conseguiria pegar o ônibus das 06h20min. Não consegui. Cheguei no ponto de ônibus às 06h23min. Pelo menos me deu tempo para olhar a capa da última “Veja” no jornaleiro. Mostrava a história de uma menina de nove anos que, estuprada pelo padrasto, iria fazer um aborto. Sua mãe seria excomungada, assim como a equipe médica. Ela estava grávida de gêmeos.
Meu caminho até o escritório levava em média uma hora e era percorrido, invariavelmente, comigo em pé no ônibus. Qual não foi minha surpresa ao ver um lugarzinho escondido lá no fundo... Esgueirei-me entre colegiais, homens de terno, rapazes e moças jovens até conseguir minha redenção matinal. Mais uma hora de sono. Parecia sonho!
Como o único lugarzinho disponível era no corredor, meu sonho de ter mais uma hora de sono ruiu. A cada dois minutos de cochilo, seguiam-se cinco de esbarrões em minha perna esquerda. E mais três de sacoladas em meu rosto. Como uma estratégia para salvar meu sono, pedi as sacolas das duas meninas que estavam em pé ao meu lado. Eram muito magras e pareciam estar com dificuldades em carregar suas sacolas. Era uma troca justa: eu as livrava do peso e elas me livravam das sacoladas. Obviamente fui atendida.
Quase metade do meu caminho tinha passado, quando o senhor ao meu lado me acordou para poder descer. A chuva tinha dado uma trégua naquela parte da cidade. Pensei em como o senhor tinha sorte e duvidei da minha. Tinha certeza que estaria chovendo no meu ponto de descida.
O senhor desceu e ocupei seu lugar, na esperança de que nada mais me incomodasse na meia hora que restava. Uma das meninas tomou meu lugar e me lançou um olhar de súplica. Estranhei. Com a face ruborizada e tremendo muito, ela me perguntou:
- Será que a senhora poderia escrever um texto pra mim?
Hesitei por alguns momentos e analisei a situação. Pedido bizarro. A menina parecia ter entre treze e quinze anos e vestia roupas de grife, o que claramente mostrava que ela sabia escrever. Sua sacola tinha roupas apenas, não livros como supus antes de tomar a primeira sacolada. Parecia muito assustada e talvez até fugindo de algo. Minha primeira reação foi não me envolver.
- Desculpe querida, mas estou muito cansada e preciso descansar um pouco antes de chegar ao trabalho...
- Por favor, eu preciso escrever um texto, mas não pode ser com a minha letra...
- Por quê? – perguntei curiosa.
- Porque não quero que reconheçam minha caligrafia...
- Você fez alguma coisa errada, menina?! – me peguei tratando-a como minha filha. E afinal parecia mesmo. Tinha idade para tanto, físico para tanto. Lembro-me que foi com sua idade que vim morar na cidade grande.
- Me deixa explicar, senhora. Existe um site chamado www.postsecret.com, onde as pessoas expõem seus segredos de maneira anônima, deixando uma mensagem escrita à mão. Eu gostaria de expor meu segredo lá, mas tenho medo que alguém reconheça minha letra.
- Entendi... Mas as pessoas escrevem assim, prá todo mundo ver? – perguntei incrédula.
- Mas é anônimo...
- Mesmo assim! Segredos são segredos. Se você quer expor, provavelmente é porque isso te incomoda muito. E você não tem vergonha de me contar?
- A senhora tem razão. Realmente me incomoda. Mas não sei, vi na senhora um rosto amigo, familiar. Confiei na senhora no primeiro olhar. Realmente contar é uma coisa que vai me fazer melhor, pelo menos vai diminuir minha angústia.
O rosto da menina mudou. A tremedeira passou e ela parecia mais confiante. Resolvi ajudar.
- Tudo bem, eu escrevo o texto.
Pela primeira vez a menina abriu um sorriso e falou:
- É rápido, o texto é pequeno.
Aqueles foram os últimos momentos de paz naquele dia.
Ela começou a me contar seu segredo e a cada palavra era como se uma viagem no tempo ficasse mais próxima, e eu não conseguia escrever uma mísera palavra, e uma angústia tomava conta de mim. A cada pausa, minha perturbação aumentava. A menina falava em meu ouvido, sem olhar minhas mãos, inertes. Seu fôlego preenchia meus pensamentos e as frases iam se amontoando sem fazer sentido, apesar de claramente terem. A última frase me fez desabar totalmente, relembrando o momento em que decidi fugir de casa e vir para a cidade grande. Caí no choro e só conseguir lhe olhar nos olhos e dizer, sem ter escrito nada, mas marcada para sempre pela coincidência:
- Eu também, minha filha. Eu também...

5 comentários:

  1. Uma poesia escrita em prosa. Cada linha desperta um sentimento diferente. Vou destacar como a descrição do dia-a-dia da personagem principal enriquece o texto.
    O final nos faz ter uma ideia do q era o segredo, mas como creio q a intenção foi para q cada leitor colocasse seu próprio segredo no mural, digo: EU TB...

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  2. hahaha A intenção foi que cada um veja que não está sozinho! Por piores sejam as coisas que já aconteceram conosco, sempre há alguém em situação semelhante. Mas, de certa meneira, eu posso dizer também: EU TB...

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  3. Sim, concordo. Essa é a mensagem do texto. Bonita mensagem, inclusive. Mas o final não deixa de ter esse toque: o leitor pode interpretar como quiser, colocar seu próprio segredo ou inventar um. Isso é bem interessante.

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  4. Interatividade é a palavra do momento. Isso é legal.

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  5. Vc continua me surpreendendo!

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