quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

JJ Silva


Prólogo
Joaquim era um menino pobre, de uma cidade violenta. Recebera esse nome para ficar homônimo do mártir da independência de seu país. Joaquim José da Silva Xavier era seu nome. Por alguma razão completamente desconhecida cresceu apaixonado por cinema. Seu maior ídolo era William Friedkin. Não por “Operação França”, mas sim por “O exorcista”. Fascinava ao menino, a menina de sua idade possuída pelo demônio e enquanto Regan revirava os olhos, seus olhos brilhavam diante da tela.
Cresceu obcecado pela idéia de melhorar de vida, se possível aliando seus maiores sonhos: cinema e exorcismo. Sim, influenciado pelo filme de sua infância tornou-se pastor evangélico e especializou-se em retirar o mal de dentro das pessoas. Não importava o método. Nem a câmera que usava. Sim, criou um negócio muito rentável: vendia as fitas de seus exorcismos a camelôs, que as revendiam e todos saíam ganhando. Sem pagar impostos, sem empregar ninguém (os empregadores eram seus seguidores), sem se importar com as vítimas e suas famílias, que estavam fragilizadas demais para impedir as filmagens.
Com o volume enorme de pedidos por mais filmes e mais exorcismos, JJ Silva, como fez questão de ser conhecido, montou um império financeiro e com isso pode atingir seus maiores sonhos. Era o mais famoso exorcista do Brasil e o mais bem sucedido diretor de cinema, economicamente falando. Foi quando se deparou com seu maior desafio. E que lhe custaria tudo.



A chuva inundava parte da entrada do Morro do Urubu, restando apenas a entrada pela Rua Silva Xavier. Coincidência ou não, talvez aquele fosse um bom sinal para a ação que iria fazer naquele lugar. Ação era como JJ chamava seus exorcismos. Talvez para não assustar quem não o conhecesse. Mas ainda havia alguém que não o conhecesse? Talvez não, especialmente após seu último vídeo, sucesso absoluto no youtube. O mais bizarro, é que a pirataria apenas fazia aumentar a venda dos seus DVDs caseiros. De qualquer maneira, JJ não gostava de voltar ao lugar de sua origem, mas pensou que se esta ação lhe rendesse um bom vídeo, valeria à pena. E entrar na favela pela rua que tinha seu nome, lhe fez pensar que isto era um bom sinal.
Seu jipe seguia subindo o morro, ganhando altura e distância do asfalto. As leis, regras e códigos de conduta mudavam à medida que o Land Rover avançava em direção à casa 6, da alameda 11. Faltando cem metros para chegarem ao destino, foram parados por cinco homens armados de fuzis e metralhadoras. JJ já se acostumara com visitas a lugares controlados por traficantes e milícias e nunca ia desprevenido ou desprovido de uma autorização do dono do lugar. Se possível, por escrito. Aquele que parecia o chefe do grupo abordou os quatro homens dentro do Land Rover de maneira bastante educada e sutil:
- Vai prá onde, porra? Que que tu qué aqui no morro o filhodaputa?
- Somos a equipe do pastor JJ Silva, e viemos curar uma menina na casa 6, alameda 11.
- Porra, daquele DVD do demônio? Caralho maluco, sabia que a Natália ‘tava fudida assim não. Ela é parceira da galera toda aqui. Mó mina namoral! Me bota na parada também porra. Quero ficá famosão!
- Infelizmente não é possível. Eu já tenho tudo certo com o Linho e ele me deu permissão para irmos até a casa. Estamos atrasados.
- Pô pastor, foi mal aí. Pode ir na boa, Deus abençoe. Mas tem que deixar o carro aqui. Fica sussa que tá na minha.
Os últimos cem metros foram percorridos à pé. JJ amaldiçoou sua mulher que tinha separados sapatos italianos para a ação de hoje: “Você fica muito bem no vídeo com eles”, ela disse. Realmente ficaria bem se eles chegassem inteiros ao barraco.
A casa, se é pode ser chamada assim, estava um caos total. Totalmente revirada, todas as roupas jogadas pela sala e pelo quarto, os móveis no chão e velas acesas punham em risco a segurança de todos. Uma mulata gorda, com o cabelo muito branco e cega do olho direito, rezava ao lado da cama onde Natália se deitava. A luz do Sol não entrava na casa e o cheiro de mofo era misturado ao de urina, provavelmente por causa de uma privada entupida. A falta de luz solar (era um dia chuvoso) e as condições precárias de trabalho irritaram JJ Silva, que temeu pela qualidade de seu vídeo. Chegou a pensar em desistir, mas a menina era sobrinha de Linho, chefe do morro. Achou melhor prosseguir, mesmo em condições ruins. Havia feito um trato com Linho: salvação da menina, vídeo divulgado e vendido. O trato foi aceito sem concessões.
JJ olhou a mulata cega com desdém e pediu que ela se retirasse. Ao tocar o braço da velha para acompanhá-la até a porta, Natália avançou com rapidez e lhe desferiu um violento tapa com o dorso da mão esquerda. A força parecia desproporcional para uma menina de 13 anos e JJ, que nunca havia sido tocado por um cliente, sentiu algo diferente. O ar parecia mais pesado que o normal, o cheiro de urina e mofo misturados quase o sufocava e sua visão ficara turva após o tapa. A mulata sussurrou algo em seu ouvido e JJ deu de ombros. Tentou se recompor e pediu que seu ajudantes montassem a parafernália para gravação da ação. Foi prontamente atendido.
- Daniel, desse lado não. Você sabe que meu melhor perfil é desse lado. Vocês realmente precisam de aulas de fotografia, enquadramento e corte de cenas. Semana passada o João quase me fez vomitar. Parecia “A Bruxa de Blair”.
Um riso tenso ecoou na sala. Era Jonas, o motorista. Jonas era o único que não era evangélico, mas já trabalhavam juntos há vinte anos. Ou seja, desde o início. Jonas era amigo de infância de JJ, e apesar dos arroubos e das humilhações de seu amigo, estava sempre presente. Mesmo nos piores momentos. O riso tenso e o ceticismo eram sua marca registrada.
Após vinte minutos de preparação técnica, JJ conseguiu se recompor e começar a ação. As câmeras foram ligadas, uma luz artificial também. A mulata, agora do lado de fora da sala, continuava rezando, cada vez mais alto, e numa língua que ninguém entendia. Ao se virar para a mulher pedindo silêncio, JJ foi surpreendido mais uma vez com a interrupção de Natália:
- Cala a boca você, viadinho engomado do caralho. Vai se fuder e sai daqui agora, seu merda!
JJ se voltou aos assistentes e falou:
-Liguem tudo agora. Vou começar.
JJ começou a orar. A oração continha palavras de ordem contra Satanás, louvações a Deus e de certa forma parecia como um hino de vitória. Ca(o)ntada antes do tempo. A mulata seguia suas rezas, num canto, cada vez mais alto, pois não havia se intimidado com o pedido de silêncio de JJ. Aliado a essas duas músicas, ao fundo podia se ouvir o funk proibidão da casa vizinha. Sem dúvidas o cenário era aterrador: em qualquer dos quatro sentidos, você se sentiria oprimido. Seja pela visão de uma menina transfigurada em monstro e pela casa em estado caótico, seja pelo cheiro de urina e mofo, seja pela música dissonante resultada da mistura de cântico evangélico, funk proibido e oração inteligível. A opressão do tato era dada pelo clima da casa: quente, apesar da chuva e pesado.
Infelizmente um filme não consegue captar toda essa miríade de sensações, e JJ também não era um diretor tão talentoso assim. A câmera o pegava no ângulo adequado, o som estava ajustado. Começara o show!
- Sai desse corpo, Íncubo maldito! Eu te comando para fora desta menina, Natália, a serva de Deus! Em nome do senhor Jesus!
- Não saio, ela pertence a mim e nada, nem ninguém vai tirá-la de mim. Eu sou invencível!
- Eu sou o representante de Deus, aquele que já te derrotou tantas vezes, eu já te derrotei tantas vezes. Eu é que nunca fui batido, nem por você, nem por ninguém! Eu sou o instrumento de Deus e pelas minhas mãos ele vai te mandar de volta, coisa ruim.
- Esse vídeo será sua ruína, Joaquim. – Natália disse com uma voz pesada, lúgubre. Sua face se ficou encrespada e a impressão é a que ela crescera alguns centímetros. Minutos após menina parecia tranqüila e serena, não passava mais a impressão de demoníaca de antes. Na verdade neste momento, a mulata parara de rezar e tinha vindo ao seu lado e falara-lhe algo ao pé do ouvido.
JJ respondeu às palavras da menina com um violento soco em seu nariz, fazendo o sangue espirrar e a mulata se afastar. A menina continuara serena e plácida. Ao que JJ analisou como um insulto do maldito Íncubo e investiu de novo sobre ela. Dessa vez, Natália tentou se defender, mas não foi capaz de desviar do soco em sua barriga, na altura do plexo celíaco. E levou outro soco na altura da mandíbula. Ao ver a menina ter muitas dificuldades de respirar, Jonas e Daniel se assustaram. Nunca tinham visto JJ ser violento desta maneira. Sempre houve socos, chutes, submissão física. Está nos manuais de exorcismo. Mas nunca com tanta violência em tão pouco tempo.
JJ, que parecia fora de si, continuou a espancar a menina, esquecendo da ação propriamente dita. A mulata continuava a rezar, desta vez em direção a JJ. Parecia até dizer Joaquim algumas vezes. Percebendo seu descontrole, Jonas tentou desligar a câmera e acalmar o amigo. JJ o repreendeu veementemente dizendo que este seria seu melhor vídeo até hoje. E continuou o espancamento. Sob os olhares cúmplices de João, Daniel, Jonas e da mulata, que a esta altura se encolhera num canto e via o espetáculo grotesco crescer a olhos vistos. Sem nunca parar de rezar. Natália já parecia desacordada e JJ ainda estava descontrolado. Batia na menina enquanto proferia palavras de baixo calão em direção a ela e à mulata. Sem nunca deixar o nome de Deus de fora.
Após 45 minutos de espancamento e hinos religiosos entoados à exaustão, JJ se deu por satisfeito. Tinha sua obra prima.
Natália respirava com dificuldades e o sangue lhe escorria pelo ouvido e pelo nariz, enquanto JJ falava com a família da menina e ia em direção ao seu Land Rover. Linho tinha ido ao Morro, mas não conseguira ir até a casa do irmão, mas tinha deixado um agradecimento ao grande pastor JJ Silva e a certeza de apoio da comunidade nas eleições do próximo ano.
Ao entrar no carro, JJ parecia satisfeito com sua ação do dia. Mal vira a mulata o fuzilar com o olhar.



Epílogo
Nair chegou ao IML no mesmo horário de sempre e não ficou muito surpresa quando viu o corpo de uma menina de 13 anos em sua mesa. É muito comum jovens morrerem numa cidade violenta como o Rio de Janeiro. Mesmo de espancamento. Por isso, Nair não ficou surpresa ao ler o prontuário. Ficou surpresa ao levantar o lençol. Melhor dizendo, ficou intrigada com alguns nódulos no corpo da menina. Lembrou-se dos tempos da clínica médica e pensou: “Gomas sifilíticas”. Ficou intrigada. Pediu um exame do nódulo e não ficou surpresa. Natália tinha Sífilis terciária, uma fase avançada da doença. De qualquer maneira, era muito estranho que uma criança de 13 anos tivesse uma fase tão avançada da doença. Nair nunca saberia a resposta a esta pergunta. Só sabia que esta doença causa transtornos de comportamento. O nome do seu Íncubo era Treponema Pallidum. Sífilis tem tratamento e quando tratada em suas fases iniciais tem cura, e o tratamento é ministrado de graça nos postos de saúde da cidade do Rio de Janeiro.
Dez dias após, um inexperiente jornalista recém contratado por prestigioso jornal da cidade, ao ir ao IML para fazer a cobertura de sempre, viu o relatório sobre a mesa de Nair, que era sua fonte. Ficou intrigado com a história de uma menina de 13 anos ter morrido espancada, aparentemente sem motivo algum e ao mesmo tempo ter sífilis terciária, como estava no relatório, acompanhado de gigantesco ponto de interrogação. Fábio era seu nome, e Fábio era fã dos vídeos de JJ. Logo a reconheceu e ligou os pontos. O maior sucesso do agora Bispo JJ Silva, era na verdade uma prova de assassinato.
Em novembro daquele ano, Fábio ganhou o prêmio ESSO de repórter investigativo.

9 comentários:

  1. Mantendo Seu estilo incomparavel sendo capaz de nos transportar para suas historias , este texto ,diferente dos demais, provoca uma sensacao de perplexidade e "mal estar "diante da narrativa tao rica em detalhes.O desfecho inesperado e perfeito !!
    Mais uma Vez Parabens!!! Espero que em 2010 possamos ler Novos Textos de Tao Brilhante e Competente Autor !!!!

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  2. Na boa, vc é crítico literário? Hahaha Tá parecendo resenha... Depois me manda sua conta pra eu depositar uma grana.

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  3. Triste o destino de Natália. Ser espancada até a morte por causa do ego e ganância de JJ Silva.
    Belo texto.

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  4. Triste mesmo... Tô achando os textos meio deprê. Vou colocar algo mais leve.

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  5. Impressionante como um Land Rover torna a historia melhor(rs)...e ja q vai depositar uma grana na conta do autonomo, passarei os meus dados tbm! :)

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  6. ANÔNIMO, mané! hahahaha Assim o dinheiro vai pro lugar errado...

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