terça-feira, 8 de dezembro de 2009


Minha vida de anestesista


O dia de hoje começou no de ontem. E terminará no de amanhã.
Às 21h30 ainda estou no hospital examinando e conversando com meus pacientes do dia seguinte: Celina, uma mulher de 35 anos, três filhos, o mais novo de um ano, tem câncer no estômago e Antônia, de 67 anos, tem uma hérnia incisional. As duas têm muitas dúvidas com relação à cirurgia e, principalmente, à anestesia, minha área. Converso com elas separadamente, mas não da maneira como deveria. Apesar de ser uma conversa rápida, as dúvidas são sanadas. Confiro os exames e as prescrições e, agora sim, posso ir. Em direção ao dia de hoje. Que começou ontem.
Às 6h40 estou a caminho. Por sorte, moro atrás do hospital, o que me dá minutos extras no fim do dia. Este tempo eu uso para estudar, dormir, comer ou assistir TV. Ah, posso também, vez por outra, tomar um chope com o pessoal da anestesia...
Às 7h10 entro na Sala 4 e arrumo todo o material de anestesia para a primeira cirurgia. Checo o aparelho de anestesia, os dispositivos de segurança, o material para intubação, as drogas anestésicas. Peço aquecedores para evitar hipotermia e acabo esquecendo algumas coisas. Inevitável.
Às 7h40, tudo pronto. Celina entra na sala, dormindo. É importante que os pacientes não fiquem ansiosos antes da cirurgia e a melhor maneira de fazer isso é dando-lhes um sedativo leve. Dessa vez funcionou bem. Veia pega, monitores instalados, e a anestesia começa. Celina está deitada de lado. Introduzo uma agulha de mais ou menos 7 centímetros em suas costas. Não, ela não sente dor, pois o local foi previamente anestesiado. O cateter peridural, arma fundamental para a cirurgia, é instalado e serve para evitar dor no pós-operatório imediato. De volta à posição original (decúbito dorsal), Celina está pronta para ser induzida. A indução da anestesia geral consiste na perda da consciência e posterior intubação.
Às 10h35 o cirurgião constata que o câncer de estômago de Celina é inoperável. Inop. Ou como eles costumam dizer “Open to see, close to die”. (Há uma versão mais inteligente, que ouvi outro dia: “Open to see, close to death”). Ou ainda F.P.T.: “fora de possibilidade terapêutica”. Celina tem 35 anos, três filhos, o mais novo de um ano. A sobrevida média nestes casos é de 30% em um ano. Ou seja, 70% dos pacientes morrem antes de um ano. A cirurgia dela vai acabar mais cedo.
Às 12h30 deixo Celina no Serviço de Recuperação Pós-Anestésica (RPA), ainda um pouco sonolenta, mas sem nenhum desconforto. Graças à morfina, dada pelo cateter peridural, Celina não tem dor. Agora posso almoçar.
Às 13h40 meu chefe me apressa e estou de volta à Sala 4, sem conseguir escovar os dentes, porque há uma emergência após a cirurgia de Antônia. O ritual é o mesmo de arrumação e checagem do material. Assim como o do cateter e da intubação. O gosto de carne é disfarçado pelo chiclete de hortelã que a instrumentadora me dá. E a cirurgia começa.
Às 16h45 acordo Antônia, que me solta um ”Ai !” e aponta para a barriga. Minha analgesia está insuficiente. Nada que mais um pouco de morfina não resolvesse, mas meu chefe não deixa. Fica com medo. Acha que a dose está ideal, e que poderíamos associar outra droga menos “perigosa”. Acato a ordem, por hora, e associo uma droga que só começará a fazer efeito em uma hora. Enquanto isso, coitada de dona Antônia...

Às 18h00 aquela emergência é transferida para outra sala onde a cirurgia acabou antes. Agora eu posso ver os pacientes de amanhã.
Às 19h30 volto ao centro cirúrgico para pegar minhas coisas e rever Antônia. Ainda com dor. Mais 1 miligrama de morfina pelo cateter. Ninguém vê, mas escrevo na ficha e carimbo meu nome. No rodapé.
Às 19h50 entra um paciente sangrando pela boca, branco feito uma folha de papel. O sangue se mistura com a saliva e o conteúdo gástrico, recém expelido. Há dois anestesistas de plantão. Teoricamente, estou liberado. Mas como duas cirurgias passaram do horário, está entrando uma emergência e há pacientes potencialmente graves na RPA, não consigo ir.
Às 21h30 Dona Antonia se sente melhor, mas está sonolenta e com muita coceira, um dos efeitos colaterais da morfina. Digo a ela que, se a morfina for antagonizada, ela sentirá dor. Peço que ela escolha entre a dor e a coceira. Ela é sábia, e fica se coçando a noite toda.
Às 23h30 todos os pacientes da RPA têm alta, transferidos para as enfermarias de origem, menos dona Antônia, que achei prudente deixar dormindo sob vigilância. A emergência sangrativa acabou. Hoje é sexta-feira. Como moro no alojamento do hospital, não vejo minha família há duas semanas... No último fim de semana estava de plantão.
Às 0h03 o dia de hoje já virou o de amanhã. Encontro os familiares de Celina. Digo-lhes que pela manhã a equipe da cirurgia conversará com eles, e com ela. Eles perguntam por que a cirurgia acabou antes do previsto. Eu respondo evasivamente.
Ela tem 35 anos, três filhos e 70% de chance de morrer antes que o mais novo complete dois anos de idade. Open to see, close to death...
Quatro dias depois, com uma infecção generalizada, Celina morre.

11 comentários:

  1. Tiago Por ter vivido exatamente esta historia , me impressiona a forma que voce descreve os momentos que fizeram parte dos nossos inesqueciveis anos de Residencia Medica. Alem de anestesista Brilhante ...um excelente escritor !!!Muito ORGULHO de voce !!!!!Continue a nos Brindar com essa face ..

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  2. Ainda bem que é anônimo, se eu soubesse quem é eu mandava te internar! hahaha
    De qualquer maneira, obrigado pelos elogios.

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  3. Fiquei emocionada com a maneira exata de vc colocar em palavras o que a gente sente quase que diariammente.
    Muitas vezes é difícil encarar o nosso dia à dia.
    Não conhecia seu lado escritor, continue nos presenteando com suas crônicas.Adorei!
    Bjs

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  4. Minha grande mentora lendo meus escritos? Vai aumentar muito minha responsabilidade agora... Esse texto foi o primeiro que escrevi, ainda lá em 2003, no fim do R1. Que bom que vc gostou.

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  5. Esse seu lado "multimídia" sempre me encantou.Certamente por isso gostava tanto de conversar com vc.Que bom que logo poderemos conversar mais.
    Não sou de maneira alguma sua mentora, vc já chegou pronto.No máximo te mostrei um pouco da nossa especialidade.

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  6. Por esses motivos tenho uma enorme dificuldade em fazer a visita pos...

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  7. NOSSA TIAGO ESTOU QUERENDO FAZER RES. EM ANESTESIO E ACOMPANHANDO SUAS CRONICAS REPENSO SE DAR PARA SER MÃE E SER ANESTESISTA!AINDA BEM EXISTEM PESSOAS DETERMINADAS COMO VC.

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    1. Faça a residência em anestesia sim. Apesar de tudo, ainda acho maravilhoso.

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  8. Realmente você acha que compensa ? Mesmo tendo que deixar a família e os amigos de lado ?

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  9. Tiago, eu tenho 15 anos, e sonho em ser anestesista, acho incrível a possibilidade de ajudar as pessoas a não sentirem mais dor. Queria saber, da sua parte, como anestesista, se tivesse a oportunidade de voltar no tempo, trocaria de profissão?

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    1. Não! Não trocaria nem por um minuto. Me divirto todos os dias quando vou pro hospital. A sensação de ver a pele cortada pelo cirurgião, sem o paciente sentir dor, é indescritível.

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