segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Sem piedade
O frio cortava meu corpo sem piedade. O vento batia em minha face, entrava pelas aberturas da roupa, invadia meu ser e a impressão que eu tinha, era a de que cada lágrima fosse congelar ao sair dos meus olhos. Sem piedade. Assim a vida agiu na manhã anterior, tal qual o frio, com este cansado corpo.
Moro na chamada Fronteira da Paz, Santana do Livramento/Rivera, no sul do Brasil. Num rancho herdado por mim após uma longa batalha contra meus dois meio-irmãos. Durante trinta anos, fui vinicultor. Hoje, me sobra pouco a fazer, após a chegada da Almadén. Meu grande legado é a sede do rancho, minha casa.
A sede se situa exatamente numa área chamada de fronteira seca. Metade no Uruguai, metade no Brasil. A linha imaginária fronteiriça corta a casa ao meio, deixando uma parte da casa no Uruguai e outra no Brasil. O mais interessante é que a construção, que data de 1917, não foi programada para estar na fronteira. Aliás, só descobrimos isso após o Google Earth. Meu neto Evandro, menino de muitas qualidades, nos deu essa surpresa. Ao sabermos dessa peculiaridade, passamos a explorá-la e mudamos a disposição de nossos cômodos, de maneira a deixar nossa cama metade no Uruguai, metade no Brasil. Só por diversão. Léa adorava esses jogos.
O inverno este ano tem sido bastante rigoroso, mesmo para nossos padrões. A colheita foi das piores de todos os tempos por causa das geadas constantes. Muito dinheiro foi perdido, muita gente ficou com fome, muitos meninos continuaram virgens sem a ajuda do álcool, muitas vidas se perderam. O frio pode fazer isso tudo. O frio pode destruir tudo. Inclusive a sanidade de uma pessoa comum. Como eu. Como Léa.
Léa acordou um pouco mais tarde naquela manhã de julho. Sabendo que tinha ficado toda ensopada por causa da febre e que isso tinha impedido de dormir bem e se concentrar nos afazeres da casa, Léa se irritou. Imagine o frio! As noites vinham sendo essa rotina de sentir calor, ficar suada, sentir frio, trocar de roupa, sentir calor, ficar suada, sentir frio, trocar de roupa... Ninguém pode ser feliz assim. Ninguém fica são assim. Quatro dias estava Léa sem dormir e sem conseguir se alimentar. Ao tentar ajudar, percebi que seu lado, o lado uruguaio da cama, estava totalmente encharcado e recomendei que fôssemos ao médico naquela manhã mesmo. Mas Evandro vinha passar uma semana conosco e teríamos que buscá-lo na cidade. Ficaria para o dia seguinte.
Ao longo daquele dia, Léa se sentiu mais prostrada e nem foi ao encontro de nosso neto. Nem viu que ele trouxera um desses computadores que estão na moda agora, bem fininhos, que dá pra carregar na mochila. Presente do neto pródigo aos velhos avôs, moradores da fronteira.
Quando chegamos em casa, encontramos Léa sem vida no chão da cozinha, com a porta da geladeira aberta. Um filete de sangue já coagulado escorria pela sua boca e uma garrafa de água jazia espatifada no chão. Léa estava urinada e evacuada. A visão que esta velha retina nunca gostaria de ter visto. Ralph, nosso cachorro, a lambia sofregamente, tentando em vão reanimar sua, um dia, tão alegre dona.
Após trinta e sete anos de companhia, eu estava só de novo. Léa morrera de maneira totalmente inesperada. O médico que constatou sua morte era amigo de Evandro e me medicou após uma crise hipertensiva naquele dia. A noite se aproximava e a agonia da solidão e o frio só cresciam. Sentia cada parte do meu corpo petrificada de medo, frio, angústia e desespero. Ainda assim, me dispus a tentar dormir uma última vez em nossa cama. Um tributo a ser pago por tantos anos de convivência, carinho e dedicação. Na mesma hora de sempre, me deitei. Não havia edredom, cobertor ou aquecedor interno que fizesse o frio daquela noite passar. Eu só queria dormir e esquecer o que acontecera e torcer pra que quando acordasse tudo não passasse de um sonho. Pesadelo.
É impressionante o poder da autossugestão.
No meio da noite, senti o maior frio de minha vida. É como se a Antártida estivesse debaixo de meus cobertores. Me senti perdido. Ao tentar pagar meu tributo ao meu grande amor, tive um sono muito perturbado, e eu, que me mantinha minhas verdades, convicções e inclusive posições (fossem elas quais fossem, mesmo na cama) intactas, acabei mudando de posição durante a noite. Acordei do lado uruguaio, o lado de Léa, totalmente perdido, com frio, sem saber se o que eu vivia era verdade ou sonho. Sem saber como poderia eu estar com tanto frio, tão molhado e nu. Nunca havia soltado um grito tão estridente e tão aterrador. Senti medo. Medo da vida sem Léa. Medo de sentir esse frio para sempre. O frio de quem rola na cama e se vê sem cobertas na noite mais fria do ano, no lugar mais frio conhecido. O frio da solidão eterna.
Os dias se passaram, nossos filhos chegaram para o enterro. Todos menos Cláudio, pai de Evandro, que não conseguiu vôo de São Paulo a Porto Alegre. O apoio da família e dos amigos, as lembranças e andar para frente, ajudam a suportar a dor. E como tudo na vida, um dia a dor passou.
Com a ajuda de Cláudio e Evandro, vendi o rancho. Que virou atração turística da cidade, graças ao Google Earth. Sei meses após fui morar com eles numa cidade menos fria. Mas o inverno ainda me traz medo. E saudade... Acrescentando ao poeta, saudade não é só arrumar o quarto do filho que morreu. Saudade é dormir e não saber onde se está ao acordar, tamanho o desespero e a impotência, mesmo só tendo trocado de lado na cama. Foi o que senti naquele dia ao acordar e gritar. Saudade. Sem piedade.

9 comentários:

  1. Pela sua maneira Viceral de escrever somos levados por esta narrativa envolvente sendo assim impossivel nao ir ate o Fim.. e se EMOCIONAR muito!!!!!!

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  2. Verdadeiramente tocante...

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  3. Sabe o q mais gosto nos seus textos? Como vc lida com várias emoções diferentes: amor, desejo, paixão, solidão, raiva etc. As vezes ao mesmo tempo, as vezes uma de cada vez. Sempre há como se identificar de uma forma ou de outra. Se eu pudesse pegava todos seus textos e lia de uma só vez. Seria um turbilhão de emoções e sem dúvida uma viagem incrível. Continue postando...continue escrevendo.

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  4. Najah, vc sabe q eu sou esse turbilhão de coisas... Hehehe O que sai é o que tem. Sou assim. Invariavelmente é bom ser assim. Eu curto.

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  5. As vezes a via é assim...sem piedade.

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  6. Gostaria de indicar-lhe um livro que considero muito bom, para quem quer escrever:
    O MEIO-IRMÃO, de
    Lars Saabye Christensen
    Ed.Objetiva.
    Não tenha medo,nem vergonha de se expor, só de ter começado já considero corajoso!
    Outra coisa, tenha estética, respeite as margens, pontuação, palavras que deverão ser sempre escritas com letras maiúsculas, como Natal, por exemplo...
    Posteriormente, gostaria de escrever-lhe mais, posso?
    Abraços,
    Anônimo.

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  7. Querido Anônimo,
    primeiro de tudo: eu não gosto desses comentários anônimos. Pode parecer que sim, porque tento ser educado com quem comenta aqui, mas não acho legal comentários anônimos. A maioria eu sei de quem são, outros não. O seu, eu desconfio, mas não tenho certeza. Enfim, deve fazer parte da mística de um "mestre" ensinando seu pupilo.Ok.
    Tentarei ler o livro. Estou atrasado em alguns que tenho que ler também, como S. King "On Writing" e Martin Amis "London fields".
    Os textos ainda não foram revisados totalmente. Colocá-los aqui foi uma maneira de testá-los. Sei que faltam ajustes ortográficos, especialmente porque não sou profissional. Já tenho pessoas prontas a fazê-lo assim que eu pedir, com um objetivo maior. Por enquanto, vou ficar colocando textos aqui e testando-os. Quem sabe assim consigo material para algo mais? Aí sim, mandarei para revisão total.
    Quanto à estética, realmente me importa. NOT!!! Numa boa, não me importo de parecer um dia de um jeito e outro de outro. Tento meu um ESTILO própria, não uma estética própria. Formas pré-determinadas não me interessam.
    As críticas, sugestões e observações são sempre muito pertinentes, quaisquer sejam. Eu sempre analiso o que me dizem ou escrevem dos meus textos e acho que assim venho melhorando um pouquinho a cada texto. Pelo menos eu me esforço. Por isso, vc SEMPRE poderá me escrever, dizer suas sugestões e observações. Ficarei muito feliz de ter uma opinião aparentemente abalizada analisando meus textos.
    Por último, queria falar de coragem. Realmente colocar os textos aqui é dar a cara ao tapa. É exposição total. O pior é que alguns textos tem passagens auto-biográficas. Logo, é exposição MINHA. Enfim, podemos dizer que sou corajoso sim. Mas isso me diverte. E é por isso que faço. Só por isso. Finalmente, posso dizer que coragem é uma coisa que anda em falta no mundo. Acho que vc sabe disso.
    Grande abraço,
    Tiago

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  8. Nossa Tiago, esse texto e incrivel. A forma como vc constroi o rumo da historia, as emocoes envolvidas de cada personagem. A leitura e feita quase num folego so. Adorei! (adorei tb o comentario final acima rs)

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